Era uma manhã de segunda-feira. No som, a trilha do filme Cinema Paradiso.
Eu estava em casa, ao lado dela. E também meu pai, meus irmãos, minha avó – a mãe dela, que aos 23 anos tinha perdido o meu avô, assim como perdi seu pai. Havia muito mais gente naquele quarto. Minhas tias, meus primos, os melhores amigos dela. Eram muitos. A casa parecia um acampamento.
Foi meu pai quem sugeriu que eu colocasse a música. A doçura do seu avô, que só fui descobrir mais tarde. Generoso em tentar fazer com que aquele momento fosse suave para ela.
Foi triste. Mas também foi grande. Um privilégio. Estar ao lado dela no exato instante em que ela deixou de estar.
Esperávamos por isso há mais de 48 horas. Ela parecia estar indo aos poucos. Mostrou ser dura na queda.
Eu me lembro de um ato desesperado do meu pai, tirando dela o tubo de oxigênio que mostrava não ter mais serventia. Talvez ela finalmente respirasse quando seu coração pudesse descansar.
"Fico te devendo Paris", ele disse chorando.
Mentira. Se para ela Paris fosse importante, teria conseguido. Colocando os desejos dele em primeiro lugar, minha mãe dominava docemente o meu pai. Eram cúmplices: ela com sua obediência esperta, ele um menino enfiado num paletó de “homem da casa”. Ele era o médico solicitado a todo instante. Ela era seu copo d’água.
Como toda boa esposa e dona-de-casa, sua avó cozinhava bem. A diferença é que fazia a outra parte também. Fazia o supermercado. Fazia o imposto de renda. Levava o carro à oficina, consertava a porta, trocava o chuveiro. Minha mãe era uma mulher com uma caixa de ferramentas. Não por acaso, tenho a minha também.
Ela tinha o mapa de Belo Horizonte na cabeça. Você perguntava como chegar em tal rua e ela não respondia sem antes saber em que número. Explicava o caminho com detalhes: cada ponto de referência, cada detalhe e até quem provavelmente você encontraria pelo caminho, até chegar do lado exato da rua, em frente ao número. Eu perdia a paciência. Era muito difícil memorizar tudo isso.
Mas eu era apaixonada por ela.
Quando pequena, eu tinha ouvido a minha avó dizer:
“Sapato virado, a mãe morre”. Rapidamente adquiri uma obsessão por manter em ordem, não só os sapatos, mas o quarto inteiro. Se era esta a intenção desse ditado absurdo, comigo deu certo. Meu armário era motivo de orgulho para Mamãe – ela gostava de mostrá-lo para as visitas, roupas separadas por cores, cabides iguais.
Ela era forte. Ela era doce. Ela era persistente. Juntou tudo e teceu a colcha da minha cama, centenas de roupas de tricô, os casaquinhos que muitos bebês usaram sem nunca a terem conhecido. Alguns deles agasalharam você, Francisco.
Dulce que não tinha esse nome por acaso. Dulce que era um sorriso. Dulce que também era Maria. A mim ensinou que a gente tinha duas mães: uma na Terra e outra no céu. Hoje estão as duas lá em cima.
Para mim foi mais fácil conviver com a morte dela do que com os dois anos de sofrimento que a doença nos trouxe. Embora parecesse impossível me acostumar com a idéia da sua não existência, desejei que ela fosse. Vi minha mãe murchar como uma flor. Troquei a cor da angústia pelo silêncio da saudade. Dor mais doce e mais altruísta.
Meus irmãos já não moravam em casa. Ficamos só eu, Papai e o enorme medo que eu sentia dele. Com a ida de quem fazia a ponte entre nós, finalmente nos conhecemos. Ganhei um pai de presente.
Por um tempo, ele cultivava a presença de objetos dela. Um chinelinho, a cestinha de tricô, os óculos. Era a primeira vez que ele encarava a sua falta. Antes, só fazia lutar com os fantasmas da sua cabeça – a esperança com muito poucas chances de sobreviver diante das convicções da medicina.
Minha dor, deixei em segundo plano. Respeitei a escolha dele. Violentei minha vontade e suportei a convivência com aqueles pedaços dela que, aos poucos, foram desaparecendo. Não olhei para trás. Não parei para pensar na falta. Apenas agradecia porque aquele sofrimento tinha acabado. Ainda levei um tempo para me lembrar dela bem, saudável.
Para não ver Papai sofrer, também não pensei no que senti ao vê-lo casado com outra pessoa – o mesmo quarto, a mesma casa, até o carro dela passou a ser dirigido pela madrasta. O importante era que ele não estivesse mais tão só.
Eu não desejava sequer mais um dia como aquele em que ele voltou para casa dizendo:
“Fui ao banco encerrar a conta da sua mãe. Não tem outro jeito, né?” Naquele momento, trocamos de papéis: era ele o filho procurando o meu colo. Com o olhar, ele me pedia permissão para tentar ser feliz. Prontamente atendi.
Comprou um Citroën vermelho com teto solar. E em muito pouco tempo estava casado.
A verdade é que a minha cabeça arranjou um esquecimento para poder seguir em frente.
Fiquei quase 13 anos sem mais me lembrar o que é ter mãe. É você que está me ensinando, filho. Naquele 21 de março, ela começou a nascer de novo dentro de mim.