sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Sonhos e retirantes.

Fui assistir ao filme sobre a história do Lula e, de sua vinda do sertão de Pernambuco até a trajetória como líder de sindicato, só consegui me colocar na pele da mãe dele.

Você mudou todo o foco, filho. Em tudo e a todo momento fala mais alto esse amor desmedido que muda o olhar da gente.

Enquanto assistia, não julgava o filme bom ou ruim. Vi com um coração mole de mãe, mole de grande. Um coração de quem se interessa mais pelas histórias particulares que estão por trás do que parece grande. Foi bonito descobrir que uma viuvez precoce empurrou o Lula para uma liderança de sindicato.

Com essa miopia bonita que é feita de amor, vi um Lula crescendo e se tornando outro, e outro, e outro, outro depois de outro. Pensei em quantos você já foi, em tão pouco tempo.

Pensei nesses tantos que na vida somos todos.

E no meu pensamento de mãe, que entre outros sonhos quer um mundo perfeito onde o filho esteja a salvo de tudo, sonhei com o encontro dessas pessoas que somos e fomos, com as pessoas várias que não puderam nos ver assim, melhores como somos hoje. Sonhei uma desordem generosa de tempos.

Estar com minha mãe. Não mais mãe e filha: duas mães, ou duas filhas, para quem a vida contou, em tempos diferentes, histórias parecidas. Teríamos muito o que conversar. E ela apertaria as suas bochechas. E eu veria o quanto vocês são fisicamente parecidos.

Um jantar do último que meu pai foi com aquela que sou agora. Eu perguntaria sobre o mundo. Ele comentaria a roupa de alguém. Haveria a hora do silêncio e a das piadas inteligentes. E o momento de me levantar da mesa e me sentar no colo dele, na tentativa de dizer que compreendo.

Sonhei até com o meu avô, de quem eu me escondia por trás da boneca. Mas era o meu avô jovem, amigo íntimo de JK. Eu olharia nos olhos dele, em gratidão por sua escrita. E confessaria: ainda que muito depois de sua ida, o tempo arrumou um jeito de ele ficar em mim. Ao final do encontro, eu pediria pra conhecer Juscelino — dos netos, sou a única que não o fez.

Para minha avó Juju, contaria piadas e notícias novas. Daria mais risadas e abraços, sem ansiedade para lhe mostrar nada – ela já sabia de tudo.

Nos olhos de minha avó Dorinha, que nesse encontro estariam de novo enxergando bem, olharia para dizer da minha surpresa: eu, que em nada me assemelhava a ela, vi desabar em mim destino idêntico. E trocaríamos ideias e dores, num exercício de desabafo e riso. Eu ouviria suas lições com um afeto diferente.

Sonhei também longas noites de conversas com seu pai e, claro, você pertinho de nós. Em algumas delas, você dormiria para que pudéssemos olhar longamente nos olhos um do outro, mãos dadas e música na sala. Haveria, sim, uma ou mais manhãs do dia seguinte, quem sabe um dia inteiro no parque, Tiradentes ou uma esticada até a praia. Eu ouviria suas vozes misturadas e ficaria deliciosamente confusa. Você pediria cócegas e ele faria as melhores do mundo — nunca mais você pediria as minhas. Em algum momento ele falaria de um certo orgulho de mim. De como eu mudei. Comentaria as minhas fotos de modelo, inflando o peito diante dos amigos e, sedutor, sugeriria uma foto com blusa transparente. Não posso dizer que parei nesse sonho porque ele não cessou.

E enquanto eu tentava voltar de longe, a luz se acendeu e o letreiro passou comprido, para que eu pudesse me situar. Fim do filme. Recomeço da vida possível.

Corri para casa. Em sua cama, você esperava por mim. Real, possível e melhor que qualquer sonho.