quarta-feira, 30 de abril de 2008

Doce.

Começo meu dia ouvindo as palavras que você não pára de aprender. Do meu quarto ouço você tentando acordar a babá dizendo "Adiá!" É o seu bom dia.

Como essa, quase todas as palavras do seu vocabulário começam com "ah"! É como se, antes de falar, você se maravilhasse com o mundo.

Ahpo é sapo, ahbuá é lua ou luz (que pra você são a mesma coisa), ah!bua é água, aaaaahmo nos parece ser amo (a gente ouve o que quer, filho). As que não começam com "ah" são poucas: viammmmm é avião, Dodó é a cachorrinha da casa da Vovó, Dedê é a Zezê, sua babá.

Ainda tem "Mã" ou "Mamã", que eu adoro ouvir. E, sim, já ouvi você falar "Papá" ao olhar para uma de nossas fotos.

De sua verdadeira fauna de bichos de pelúcia, todo dia você escolhe alguns para abraçar com um suspiro doce, dar uma mordida com gosto e um tapinha delicado nas costas. Você é uma delícia, amor.

Ah! Eu amo você, Francisco.

terça-feira, 29 de abril de 2008

O precioso.

Como é difícil encontrar o amor, filho. É que amor de verdade não é feito só de pele. O que o torna amor é ser feito de alma. Sua matéria-prima é cumplicidade. Você pode se relacionar há anos, ser casado com uma pessoa e não ser dela um cúmplice. Se ela não disser sim, não há o que eu chamo de amor. Cumplicidade, filho, é alguma coisa que você pode conquistar com alguém que parece estar longe. Uma pessoa com quem você se corresponde, por exemplo, pode chegar tão perto do seu coração, mesmo que você não a conheça fisicamente. Isso é amor. Amor de alma. Era o que eu tinha com seu pai. E tinha todo o resto também. Mas parece que as melhores coisas da vida são mesmo as mais difíceis de se encontrar.

Filhote.

Hoje cheguei tarde do trabalho e, ao ouvir seu choro para a mamadeira da meia-noite, aproveitei pra ter você no colo por dez minutinhos. Sonolento, você sorvia o leite com voracidade. E me peguei beijando seu rosto, passando as mãos nos seus cabelos. Foi então que percebi: já não era mais um bebê no meu colo. Seus 82 centímetros deitados sobre minhas pernas cruzadas, mais de dez quilos que eu amo grama a grama - e já não cabem mais suas pernas sobre o ninho que faço com as minhas. O tempo corre, eu corro, corro, corro. E é sempre maravilhoso voltar. Nesses meses todos, me mexi de um jeito nunca antes visto, tive uma força e uma resistência de que não me achava capaz. Esqueci o que é preguiça. Faço sem parar pra pensar. (É sem pensar que a fêmea defende sua cria.) Olho para esse mundo feio e hostil, olho pra você e sigo em frente. Sou capaz de tanto mais. Tanto. Só porque você existe, filho.

E continuo amando repetir a palavra filho.

domingo, 27 de abril de 2008

Assim nascem os pais.

No começo, era difícil. Estar com eles era lembrar a falta doída do seu pai. Hoje, é alegria.

Gosto de saber que eles estão aqui. Gosto de estar com eles a cada sábado ou domingo. Gosto principalmente do sorriso deles ao ver você chegar. Gosto e me sinto bem, sem fazer esforço.

A cada fim de semana nos conhecemos mais, aprendemos nossas diferenças, reconhecemos nossas semelhanças, vivemos mais. Mesmo diante da falta. Fazemos dela o que foi presença, celebramos a vida do seu pai e continuamos sua história.

Qualquer família é feita desse encontro. Mas com a gente, talvez tenha acontecido algo muito especial. Seu pai nos preparou a casa, nos colocou por perto, deu o primeiro passo para esse gostar que é de diferentes, mas feito de admiração.

E por não haver mais o seu pai entre nós, o amor que a gente constrói é bonito de tão sincero. Não há o que suportar, há apenas o prazer das descobertas. De uma história antiga que é a do seu pai – a cada fim de semana eu o conheço mais, pois aprendo de onde veio. E de uma história nova que contamos juntos: a sua.

Você nos surpreende e nos ensina, naturalmente nos aproxima e nos faz sentir que somos duas pontas de uma mesma família. E assim somos família. Não mais sogros e nora, mas pais e filha. São eles os novos pais que ganhei de presente, depois de anos sem ter os meus. Para eles dou também um pouco do seu pai de presente, revelando-o pelo olhar do meu amor. Deles ganho pedacinhos do seu pai antes de mim – e percebo que dele ainda tenho tanto a conhecer.

Isso tudo é tão bonito.

E não é porque teve que ser assim, mas porque escolhemos assim. Porque dissemos sim: eu para eles, eles para mim. E foi você quem motivou essa mágica.

Hoje saí da casa dos seus avós sentindo por eles o mais profundo amor. E entendendo que, ao fazer em mim um filho, seu pai estava plantando uma nova família pra me dar de presente.

Casa.

Ele mora em mim. E dorme. De vez em quando desperta, com um pedaço de memória caído no chão, mas logo volta a dormir. Ele mora em mim e às vezes se mexe, procurando uma posição mais confortável. Eu tento não fazer muito barulho. Confesso que, por alguns instantes, quase sem querer, vejo um pedaço do seu rosto ou do seu corpo. E me lembro do quanto é bonito. Ele mora em mim e às vezes fala com a minha voz, sonha com meus sonhos, ri com o meu riso, se move com minhas pernas, abraça com meus braços. Ele mora em mim e ama com o meu coração. Ele e o amor que sinto por ele se misturam na cama macia que existe dentro de mim. São um só, pernas entrelaçadas, num sono de colherzinha. Ele morando em mim, me faz melhor. Olho para mim, vejo o meu amor e vejo a mim mesma. Eu me lembro de mim. Lembro da felicidade a dois, da nobreza do amor que construímos. Altruísta, leve, generoso, amor que se faz feliz ao ver o outro feliz. Ele mora em mim e me faz mais forte. Nunca, em toda a minha vida, tive tanta coragem. Nunca fiz tanto ao mesmo tempo. Ele mora em mim e faz ainda maior o meu amor por você, filho. Sou mãe, mas não sou pai. É ele que é pai em mim. Sou coragem e completude. Ele mora em mim e continuamos sendo dois. Porque ele mora sozinho em mim. E eu continuo respeitando seu espaço, seus motivos, sua solitude. Não pergunto por quê. Não há porquê. Ele mora em mim e será sempre assim. Dentro de mim ele me faz maior para cuidar de nós. Dentro de mim ele se faz mais amor para amar o outro. Ele mora em mim com seu amor bonito pelos amigos. Que agora é meu também. Ele mora em mim com sua sabedoria de amar. Ele se mudou para dentro de mim levando seu hedonismo, seu sorriso e sua delicadeza. Acho que me tornou mais alerta também. É bem-vinda a sua inteligente desconfiança. E eu, que era doce, ganhei tempero para ser melhor. Ele mora em mim e apurou meu sabor. Mora em mim com seu olhar feliz para os céus azuis, com seu gosto pelos dias de outono, seus olhos atentos para os traços em desalinho. Ele mora em mim com seu detalhismo sarcástico, sua inteligência charmosa, seu humor (e também seu mau humor) de criança. Ele mora em mim com seu jeito de corpo. E se mesclou comigo, já não sei quem sou eu e quem é ele. Mas sei que somos dois em mim. Ele mora em mim e o meu amor nunca mais foi o mesmo, agora é amor maduro, sensível, amor muito e para poucos. Não mais amor fácil, porque amor verdadeiro. Ele mora em mim e dorme. De portas abertas, para que esse amor que é dele chegue até você. Ele mora em mim e com ele o nosso grande amor por você. Nosso Francisco.

sábado, 26 de abril de 2008

Lindo mesmo.

De: guifraga
Data: 27 de julho de 2006 17h37min27s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: ei, linda

é só pra te dar um beijo bem goshtoso. pra dar outro beijo bom no nosso filho (a)(s) lindo (a)(s).

quinta-feira, 24 de abril de 2008

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Brinquedos na sala.

Últimas horas de um fim de semana prolongado. O céu escurece, a casa finalmente está calma. Você dorme depois de uma ou duas horas de verdadeira farra, com direito a cambalhotas e mordidas. Ouvindo Elvis em um arranjo só para crianças, recolho os brinquedos espalhados pela sala e percebo um sorriso no canto da minha boca. Incrível como algumas cenas podem carregar dores e amores com a mesma intensidade. Obrigada, filho. Recolher objetos ganhou um novo sentido para mim.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Troca.

Engraçado, filho.
Você saiu de dentro de mim para a vida.
Seu pai saiu da vida e foi para dentro de mim.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Norman.


Voltando de Ilha Grande para casa, em nossa última viagem juntos, pegamos um barco de pescadores a caminho de Angra. Havia um menino bonito e sonolento a bordo. Com o olhar delicado de sempre, talvez agora mais atraído pelas crianças, seu pai não perdeu a oportunidade de fotografá-lo. Foi um ensaio bonito, de fazer inveja a um Cartier Bresson. Dias depois, no trabalho, ele e nosso amigo Pina cuidaram para transformar uma das fotos numa imagem ainda mais bonita. Assim nasceu Norman, que seria um quadro para a parede da nossa sala. Quem diria, filho, que seu pai é que se transformaria em tantos porta-retratos. Tão poucos dias depois, seu avô viu as fotos do menino e observou: "Parece o Gui pequeno". Só nos restava suspirar e sentir.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Palavras mágicas.

Já está quase na hora de ensinar a você, filho, uma lição inesquecível da minha mãe: "Existem palavrinhas mágicas. Por favor e muito obrigado são algumas delas."

Este é o momento de usá-las.

Vou dizer muito obrigada, filho, também em seu nome. Para agradecer a tantas e tantas pessoas que reservam uma parte do seu tempo para cuidar da nossa história. Que nos emprestam seus olhos, seus ouvidos e suas mãos. Que nos escrevem mensagens como quem nos dá colo. Que dizem ser ajudados sem ter a noção do quanto nos presenteiam.

Muito obrigada a Lia Bock, amiga e primeira jornalista a enxergar este blog. Muito obrigada a Sandra Soares, Lilian Monteiro, a cada jornalista que coloca seus olhos aqui e vê alguma coisa que vale a pena divulgar, a cada blogueiro que vem aqui, gosta e recomenda, me fazendo a acreditar que de fato escrevo.

Muito obrigada à equipe do Globo Repórter que, ao fazer uma matéria ao som de "Our love is here to stay", mostrou que aqui as amizades são mesmo feitas para ficar.

Agradeço, filho, porque este espaço ocupa outro, nada virtual, no meu coração. Porque cada um que vem aqui para partilhar com a gente a sua história, cada um que vem para nos deixar um abraço, uma palavra, um carinho, uma oração, está nos dando as mãos. E assim passamos a caminhar juntos. Que é muito mais agradável, muito mais divertido.

Mas existe outra palavrinha mágica que aqui se faz necessária: perdão. Peço perdão por não conseguir o tempo para responder a cada mensagem, por não dar a cada um a sua merecida resposta e o seu merecido carinho.

Palavrinhas mágicas, filho. Espero que você as aprenda, uma a uma. Mágicas como essas pessoas que agora vivem perto de nós.

sábado, 12 de abril de 2008

Você na TV, filho.

Um resumo da nossa história. Para entender e sentir.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Sobre o amor.

Quando nasce um amor novo, é difícil resistir à tentação de alimentá-lo só com a presença. Mas é preciso deixar o amor respirar. Se você colocar uma flor bem bonita dentro de uma redoma, com medo que o vento e o tempo levem sua beleza, manterá por muito pouco tempo o que dela é bonito.

O que eu aprendi sobre o amor, filho, é que ele é feito de faltas e presenças. E que nenhuma das duas pode faltar.

Aprendi que o amor é feito de liberdade. É como ter, todos os dias, muitas outras opções. E ainda assim fazer a mesma livre escolha.

Dessas pequenas vitórias se faz a alegria de amar e ser amado. Descobrir no olhar do outro que você foi escolhido de novo. E de novo, mais uma vez.

Também aprendi que o amor interrompido em seu auge permanece bonito para sempre. O que pode ser muito doído ou pode ser um presente. Depende de como a gente quer guardar. Depende de como a gente quer seguir.

O amor é feito de falta, filho. Mas aí mora um perigo: adorar mais a falta que o próprio amor. Posso cometer esse erro diante de quem amo ou diante da própria falta. E aí quem passa a faltar sou eu mesma.

O amor é feito de falta, mas não sobrevive sem a presença. O amor é feito de hoje.

Por isso, ao ver a ida do seu pai, meu coração deu um nó. Como continuar minha caminhada, como não olhar para trás, se vinha de lá a nova presença, o novo amor?

Você é feito do amor de ontem, cresce amor de hoje e vai ser amor de amanhã. Você me trouxe a alegria de continuar amando o seu pai. Aquele que conheci, com quem vivi cada hoje com intensidade e delicadeza. Aquele por quem lutei, com quem briguei. Aquele que me transformou e que se deixou transformar por meu amor.

Você e ele, juntos, me trouxeram o milagre de continuar amando a mim mesma.

A falta do seu pai doeu ontem e dói ainda hoje. Mas não é a mesma dor. Com esse amor, tento transformar a dor de hoje em uma dor diferente amanhã.

O que aprendi sobre o amor é que ele deve estar sempre distraído. Mas quando falta o objeto do amor é o contrário: melhor não se distrair nunca.

O que aprendi sobre o amor - e isso aprendi sobre o amor a mim mesma - é que ele exige de mim, todos os dias, um esforço. Um exercício diário do qual não posso abrir mão.

É como estar num mar profundo, sem barco ou bóia. Não posso simplesmente boiar. Posso relaxar um pouco, mas logo retomo o nado. Não posso boiar, não posso, não posso. A onda pode me levar.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Would he know she's no good?



Acho que não deu tempo do seu pai ouvir isso. Queria ter dançado essa com ele. Eu aproveitaria pra dizer "I love you so bad!". Sei direitinho como ele dançaria essa música, filho. Um dia ainda mostro pra você. Seria mais ou menos assim:







segunda-feira, 7 de abril de 2008

Saudade não tem fim.

Em novembro de 2006, minha amiga Patrícia Lisboa me trouxe de presente o cd do Grupo Curupaco, "O vôo do Pterodáctilo". Faltavam quatro meses pra você nascer e eu queria curtir cada pedacinho dessa minha entrada no mundo das mães. Comecei a ouvir o cd no curto caminho de casa até o trabalho e ia comentando com seu pai sobre cada nova música que eu ouvia. Até que cheguei na música de número dez.



Essa eu tive que mostrar para seu pai, num dia em que ele veio dormir em casa. Quando a música começou a tocar, me abracei a ele e chorei, chorei, chorei, sentindo uma dor inexplicável. Naquele momento, eu pensava estar chorando a falta do seu avô. E me lembro apenas de sentir o seu pai me apertando muito, num abraço forte, sem dizer nada. Parecia que ele queria me proteger - e talvez quisesse mesmo -, como se entendesse a dor que aquela canção me causava.

No dia seguinte, enviei a música pra ele por email. Era tão linda, terna, tinha a ver com a nossa delicadeza de guardar as coisas bonitas que a gente via pela vida.

Passaram-se dois meses e já não éramos nós dois, eu e seu pai. Éramos nós dois, eu e você. E você ainda não tinha nascido.

Depois do 17 de janeiro de 2007, os amigos do seu pai recolhiam as coisas dele do computador do trabalho. E lá estava um arquivo de mp3 com o título Faixa 10, solta no desktop, como se não pertencesse a pasta alguma.

Como explicar?

Tem coisas na vida, filho, que são feitas só pra sentir.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Notas de silêncio.



Durante alguns dias em que eu e seu pai estivemos separados, em 2006, minha melhor companhia foi um disco do Cat Power, presente do meu amigo Kowalsky, que carinhosamente desenhou um coração partido na face do cd. Esta música faz parte da categoria das “músicas silenciosas”. Ouço bem alto e ainda sobra espaço para sentir. É música que fala de falta – e por isso mesmo fala de encontro. De uma presença, que era o que eu estava tentando encontrar naquela época: a minha própria. Chegar mais perto de mim, naqueles dias, talvez tenha ajudado a trazer você, dias depois. Eu me reencontrava com seu pai, mas não ia só – pela primeira vez na vida, eu me sentia em minha própria companhia. Depois de um tempo, de fato, não estava mais sozinha: descobri você dentro de mim. E então se explicaram aquela força e aquela alegria que eu sentia sem saber por quê.



Já esta, do M. Ward, também silenciosa, foi minha companhia numa outra transição. Entre a perda do seu pai e a sua chegada, eu sentia uma mistura que eu não sabia explicar – nem sei se sabia sentir. Essa música me ajudou a chegar no lugar. Minha tristeza se assentou, talvez por finalmente ter se mostrado. E era uma tristeza doce. Uma tristeza em paz. Ouvir essa música me fazia pensar e principalmente sentir tudo isso: a ida do seu pai, sobreposta à sua chegada, e a possibilidade (sim, naquela época) de amar alguém de novo. Amar outro homem. Na confusão absurda daquele momento, essa música parecia me contar a minha própria história.

Tenho lembranças dela no dia do parto, quando fui dirigindo ao médico ainda de manhã, sozinha, e ele me disse que provavelmente você demoraria uns dias pra nascer. Eu me lembro de sair do médico, sentar de novo ao volante do carro, ligar o som e, já de licença-maternidade, ficar pensando no que fazer, naquele dia em que o mundo inteiro trabalhava e eu tinha parado para esperar o meu filho chegar. Porque, embora o médico tivesse dito que não, talvez eu já soubesse que você estava vindo. Naquele dia, sim, senti solidão. Porque a vida das pessoas tinha que continuar. E eu estava diante de um divisor de águas. Nunca mais voltaria a ser a mesma. Seu pai já não estava ao meu lado para presenciar essa mudança – nem para mudar comigo.

Fazia um mês que eu só ouvia esse disco no carro, desde que o Maurilo o levou pra mim de presente.

Ele não sabe que foi essa seleção de músicas que me levou para outro lugar. As próprias músicas acabaram se tornando um lugar. Que eu visito de vez em quando, para entender de novo o que senti. Para entender, sentindo de novo.

Até hoje, ao ouvir essa música, tenho uma vontade de chorar que não é de tristeza. É de beleza. É disso que ela fala. É disso que fala a nossa história, filho.

Da beleza de um ir e vir, sem lógica nem explicação. Da beleza de um sentir que se mistura - o que sinto por ele, o que sinto por você.

Se existe um lugar, além de mim, onde você e seu pai se encontram, é nessa música. E não é pela letra, porque eu nem me preocupo com ela. É pelo que ela provoca aqui dentro: um sentir, sentir, sentir. Que não tem nada a ver com pensar. E que, nessa falta de lógica que compõe a nossa história, se explica.

Era uma vez uma menina chamada Rebecca.

Não existe presente melhor do que alguém escrever pra gente - ou sobre a gente. E quando esse alguém é a Rebecca, filho, isso fica ainda mais bonito.

"Era uma vez uma menina, que encontrou o amor.

E o amor era forte e bom, e tudo estava enfim muito certo.

E o amor fecundou. Como sempre fecunda. E tudo continuava muito certo e bonito. E cada vez mais leve.

E sonhos suaves e pertinentes se fizeram ouvir, cada vez mais próximos, cada vez mais próximos, cada vez mais próximos. Como um trem suave chegando, abarrotado de luzes e véus cantantes. Como uma fruta no ponto. Como um futuro enfeitado.

E tudo ficou enfim tão milagroso que o fio da melodia se partiu. E a história derivou meio sem rumo, no campo tumultuado das grandes interrupções. E o presente, de repente, tornou-se violento e terrível, tinha mil bocas abertas e uma só missão: devorar o que fosse preciso até que a história pudesse ter um fim.

E a menina ficou no mundo com uma grande saudade nas mãos. Como às vezes costuma acontecer, mesmo não sendo muito bonito esse mistério.

E o filhinho do amor nasceu e ganhou nome de santo descalço. Porque assim tinha que ser.

E os dois foram crescendo juntos. A menina e o filho do amor. Tristinhos, tristinhos.

E essa seria uma história feia e amputada, como muitas infelizmente são, não fosse uma idéia que a menina teve: a de pegar com as mãos a própria história. E a de fazer dela um modo de contato.

E a menina foi então dividindo sua saudade e sua tristeza em pedacinhos pequenos, cada vez menores, cada vez menores, cada vez menores.

Tão pequeninos e breves que podiam ser observados com menos medo. Tão suaves que viravam memória, viravam história, viravam poesia. Tão leves que podiam ser rapidamente enviados para longe.
Um longe que era muito perto. Um longe que eram as outras pessoas.

O filho também ajudava. Ia pegando os pedacinhos de desespero e dor que a mãe não conseguia enfrentar e ia dando a eles o colorido delicado da sua inocência. E eles iam ficando menos duros e feios. E cada vez mais floridos.

E foi assim que se deu o milagre.

Juntos, fizeram a vida continuar viva. Juntos, escrevem uma história toda deles.

Todos os dias."


(Rebecca Monteiro)

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Cores.


Da janela do meu trabalho, o fim de tarde de uma quarta-feira, 10 de janeiro de 2007. Na quarta seguinte, seu pai já não viu o sol se pôr. Pelo menos, não desse ponto de vista.

terça-feira, 1 de abril de 2008

O sim de cada dia.



Minha barriga já estava bem crescida, eu me lembro. Eu e ele estávamos saindo do meu apartamento, entrando no elevador, quando eu disse, gracejando: “Você é meu marido”. Ele olhou pra mim, buscando confirmação: “Sou?”

E assim nos casamos: num lugar chamado coração. O nosso sim, filho, era a cada dia. A cada manhã que acordávamos juntos, no email carinhoso que um mandava para o outro. Era um amor muito fresco e leve. Não precisávamos morar na mesma casa para sermos companheiros. Tínhamos sido casados antes. Estávamos há mais de um ano experimentando esse formato. Tínhamos motivos para acreditar que era melhor assim.

Antes disso, um dia ele sugeriu que comprássemos uma casinha. Foi surpresa boa de ouvir. Mas confesso que eu tinha medo de estragar tudo. Eu ficava pensando nos dias em que ele tivesse vontade de ficar só. Ou eu. Quando um começa a chegar mais tarde em casa por uma certa falta de espaço. O melhor da gente é preciso regar todo dia. Cuidar como planta frágil.

Quando passássemos a morar na mesma casa, para que os emails de bom dia? Talvez se tornassem escassos os telefonemas “só para dar um beijo”. Pequenos gestos que fazem do amor uma alquimia sutil, temperando ao gosto dos chefs o prato de cada dia.

Ao mesmo tempo, queria ver isso acontecer. O aprendizado de cultivar os encontros em meio à rotina massacrante. Driblar problemas do cotidiano, encontrar a suavidade de não fazer tudo sempre igual. Será possível? Seria? Para mim seria um desafio gostoso. Era muito o amor que eu sentia.

Falávamos de quando ficássemos velhinhos. Fazíamos vozes e boquinhas murchas, brincando com a imagem que trazíamos desse futuro. Seria sempre bom.

Com o tempo, vamos aprendendo a conhecer o outro. Seus gestos passam a ser previsíveis. Mas isso também tem uma alquimia.

Por que não querer todos os dias aquele abraço quente, dormir de conchinha, rir ao adormecer, piadas muito particulares, linguagem própria, segredos e sexo pela manhã? Por que eu não haveria de gostar de saber de cor seus gostos e preferências, suas chatices e manias?

Mas a vida acharia uma outra forma de eternizar esse “sim”.

O seu sorriso toda manhã, Francisco, é o email dele me deixando um bom dia. É o telefonema só pra dar um beijo. É o amor fresco e renovado que eu rego todos os dias.

É um privilégio seguir amando - e amando cada vez mais.