domingo, 11 de janeiro de 2009

Porque é preciso voar.

Sobre o meu tio-avô que se foi outro dia, li hoje um texto escrito há muitos anos. E ele me fez chorar. Não só porque o Tio Hugo foi mais um que eu queria muito que você tivesse conhecido. Mas também pela sensibilidade do Humberto, que foi quem escreveu. É no meio de pessoas assim que eu quero que você viva, filho.


O espalhador de passarinhos

Rodando com a família pelas estradas de terra dos anos 1950, nas suas Minas Gerais, havia sempre aquele momento em que ele embicava o Chevrolet 39 para o acostamento, desligava o motor e pedia que todos se calassem. Aí metia o pescoço pela janela e ficava escutando o que, lá fora, a qualquer outra pessoa pareceria o mais compacto silêncio. A qualquer pessoa, não a ele, que de repente autorizava o reinício da algazarra no banco de trás ao informar, antes de pôr o carro em marcha, que naquela vereda lá embaixo havia um bicudo, ou um curiol, que é como ele diz curió. Não importa se o dicionário Aurélio desconhece essa pronúncia arredondada do nome da ave passeriforme, da família dos fringilídeos, catalogada como Oryzoborus angolensis: para Hugo é curiol, e pronto.

Bem mais que mestre Aurélio, que possivelmente nunca teve uma gaiola (a não ser que se queira chamar assim seus dicionários, gaiolas metafóricas onde aprisionar palavras), ele fala com a autoridade de passarinheiro, paixão pousada lá no fundo de seus 71 anos de vida. Paixão que já o arrebatava naquele Natal em que pediu um passarinho diferente, e encontrou sob a árvore, numa gaiola dourada, um bichinho colorido como nenhum outro. Como é que chama?, perguntou, extasiado. Camuflage, disseram-lhe. Por dois gloriosos meses, reinou sobre a meninada do bairro como possuidor daquela maravilha — até que em fevereiro, época da muda, seu Camuflage — que tinha sido pintado pelos irmãos mais velhos — perdeu as penas e se converteu, Cinderela ao contrário, numa reles fêmea de papa-capim. Papai Noel, para Hugo, morreu ali.

A alma passarinheira, felizmente, resistiu ao golpe, e em nome dela é que ainda hoje, vira e mexe, ele se enfia numa botinas de goma e se manda com suas gaiolas para algum lugar distante. Nos anos 1940 e 1950, o rumo era quase sempre um vazio no mapa de Minas a que chamava de Sertão (corruptela de desertão, ele ensina). Lugar sujeito a onças, preocupava-se dona Wanda, que na tentativa de dissuadir o marido não media argumentos:

— Não é nem por você — disse um dia, hilariante em sua irritação. — É por mim que eu peço: já pensou na minha vergonha, tendo que contar que meu marido morreu de onça?

Hugo ouvia aquilo, pendurava no ombro uma capanga de lona e seguia em frente. Ia geralmente com os cunhados Mário e João Antônio, com algum sobrinho, um filho. Mas o companheiro habitual era um amigo bem mais velho, o ferroviário Elpídio. Com ele se embrenhava no Sertão por três, quatro dias, durante os quais, entretido na pega de passarinhos, negligenciava coisas secundárias como almoçar e jantar.

— Quem viaja com esse seu marido pode comungar a qualquer hora — queixava-se Elpídio a dona Wanda. — Está sempre em jejum.

De uma coisa Hugo sempre se orgulhou: nunca vendeu passarinho. E se comprou foi só um, o bicudo Juvenal — assim chamado porque pertenceu a um investigador de polícia que tinha esse nome —, prodígio cuja reputação atravessou as fronteiras de Minas para além de seus 26 anos de vida. Vinha gente vê-lo e ouvi-lo. Certa vez um amigo de Hugo, homem riquíssimo, sacou o talão de cheques:

— Diz aí quanto você quer no Juvenal.

O dono do bicudo encerrou a conversa:

— E como é o canto desse cheque?

Em lugar de vender, soltou o veterano Juvenal em Cristalina, Goiás, em meados da década de 1970. Devolveu-o à natureza na esperança de ver perpetuado o inigualável canto de Araxá. Pois também os bicudos, como os seres humanos, arrastam sotaques — nenhum deles mais belo que o que se ouve nessa região do Triângulo Mineiro. Que se ouvia, aliás, pois já não existe o canto de Araxá, adulterado ao longo dos anos numa babel de trinados plebeus. O que sai hoje da garganta dos bicudos não é mais que um insípido esperanto canoro.

Hugo inquieta-se, também, com a rarefação das espécies, e por isso vem, há décadas, colhendo passarinhos onde sejam abundantes para semeá-los onde vão escasseando. Batalha para retardar a extinção — eis um esforço quixotesco de que não se fala nos jornais e muito menos rende votos. Quem passar hoje pelo Morro do Chapéu, por exemplo, nas vizinhanças de Belo Horizonte, como aquele Chevrolet 39 nas estradinhas dos anos 1950, e ouvir cantar um pintassilgo, não saberá que ele pode ter vindo da distante Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha, nas asas de um perseverante espalhador de passarinhos.

(para Hugo, meu pai)


Escrito por Humberto Werneck, em outubro de 1990. Jornalista e escritor, Humberto tem vários livros publicados e lançou recentemente "O santo sujo"
.

22 comentários:

Renata Carvalho Rocha Gómez disse...

... faltam palavras pequena.
beijo em vcs

Regina disse...

Adoro o canto dos pássaros, como Seu Hugo, mas prefiro apenas ser uma espectadora. Agora mesmo, enquanto lhe escrevo, eles estão fazendo a maior algazarra. Eu penso que há um ninho por aqui.
Imagino o Chevrolet 39, época que gostaria de ter nascido.
Anos 40, 50, são puro charme.
Já tinha lido Humberto, ele também escreve com a alma, como você Cris.

Um beijo.

Joaninha disse...

Que encantamento de texto, li-o com aquele suspiro de quem sabe que vai acabar por chegar ao fim. E, no entanto, quero ir cada vez mais rápido para saber como termina. Que delícia. E conhecer quem mereça que a sua história seja contada é igualmente bom. 1 beijinho de Portugal

Kell disse...

Lindo. De arrepiar a alma.

redatozim disse...

Cris, comprei e li o "O Santo Sujo", até por ser fã do Ovalle e, talvez por isso não tenha me surpreendido o quanto me emocionei com o texto do Humberto. Lindo.

Zuleid Dantas Linhares Mattar disse...

Cris,
já reparou como os pássaros prescindem dos idiomas? Têm o dom da palavra cantada, acessível a qualquer ouvido afinado com a paz!
Saber que existem pessoas que se tornam embaixadores destes bichinhos é um consolo em tempos onde homens que falam a mesma língua não se entendem.
Obrigada por compartilhar!

Carla Martins disse...

Olá Cris...Só posso agradecer. Estou passando por exatemente isto tudo q vc descreve tão perfeitamente! Meu maridão, com quem eu estava há 8 anos, morreu há seis meses, de leucemia, com 26 anos. Não tivemos tempo de nada, nem de tentar nada, descobrimos num dia, ele morreu no outro. Fiquei aki, com um bebe de um ano, q é minha razão pra não morrer aos poucos. Me vi em cada pedacinho do teu blog, e descobri q esta dor um dia passa, embora não pareça, ela se transforma. Obrigada! vc traduz o q eu sinto exatamente, embora eu não tenha noção exata de como explicar quando leio penso: É exatamente isto.... Deus, só um coração com a mesma cicatriz q o seu pra te entender. Vc tem muita garra pequena! Pelo q li somos muito parecidas: uma muralha de força, num coração de algodão! Beijos e parabéns!

Marcos Menezes disse...

Tudo muito bom.

Anônimo disse...

Ai que vontade de sair por aí escutando os barulhos da mata e conhecer de pertinho alguém assim, tão lindo e querido!
Ótimo dia para você! Beijoca no Cisco.
Claudia Chaves

Nina disse...

ahh, então a qualidade da escrita tá no sangue, né?
compreendi :)

linda viagem às Minas :)

Uma mãe em apuros! disse...

toda vez que venho aqui fico sem palavras, sempre lindo!
bjos

Anônimo disse...

Oi, Cris !!

Ganhei seu livro de presente de uma amiga querida e terminei de lê-lo ontem... Fiquei muito emocionada e tocada com a historia, a forma que foi escrito, com tanta emoção em cada palavra...
Realmente, sua história é linda e espero que seu caminho seja sempre repleto de alegrias!

Um beijo no coração,
Marília

Uma mãe em apuros! disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Regina disse...

Cris,

Sinto falta de fotos de Cisco.
Tinha visto uma, ele está tão lindo.
Põe uma algum dia destes?

Beijo

Michelle Ribeiro disse...

Cris, acabei de ler o seu livro e a sensação que ficou foi a de que Francisco é um menino de sorte. Pessoas como você são escolhidas a dedo para enfrentar o que você enfrentou tão lindamente. Queria eu ter a honra e competência de poder ter ao meu lado alguém tão iluminada quanto você. Quem sabe um dia...Parabéns pelo livro, pelo filho e por tudo o que você proporciona a nós, leitores de você.
Um beijo bem gordo em você e um cheirinho no Francisco.

Anônimo disse...

Por um acaso do destino, peguei uma revista antiga.. dessas que se lê quando está atoa, e vi uma matéria falando de vc.. do Francisco.. e hoje.. acordei e (sorrateiramente em horário de trabalho) to lendo seu blog e ficando hora encantada, ora orgulhosa de sua força. Não é fácil transformar a dor em palavras e estas tocar a nos tão no fundo da alma!
ganhaste uma admitadora a mais nesse lugar tão cheio de gente querida.

Um grande beijo a você e ao Francisco!

Manuca de Paula disse...

Muito bonito e engraçado! Soltar passarinhos... Isto deveria ser uma profissão renomadíssima!

bjs

Marcos Menezes disse...

tudo muito bom.

Déia Tariga disse...

Lindo....muito lindo...

Faz com que qualquer pessoa emocione-se...

Lindo seu blog...conheci através da Carolina Arêas, pode ter certeza serei mais uma leitora assidua alias não só leitora como admiradora, sua história de vida realmente é p/ quem pode, pra quem tem força, pra quem é guerreiro...Deus sabe o quanto uma pessoa é especial...Você uma pessoa iluminada...

Parabéns...muitos parabéns!!!!

Bjs!!

Anônimo disse...

Oi Tudo Bem ?

Larissa Santiago disse...

vi as grandes serras... senti saudade dessa sua terra linda!!
e seu filho vai aprender a admirar tbm...

linda homenagem!

Pedro Afonso disse...

Itamarandiba:
Considerações sobre a localidade:

Localizada no Alto Jequitinhonha em MG, foi fundada por Fernão Dias Paes Lemes no Século XVII, em 1980 inspirou a Milton Nascimento que a cantou em verso e prosa.Em 1997 as Cidade Recebeu da Presidência da República o Titulo de Cidade Solidária do Brasil. Em 2005 foi campeã do desmatamento da Mata Atlântica, o que fazer?! O que fazer com nossos passarinhos, porque cultivar a biopirataria, em uma das localidades que mais sofrem com o desflorestamento, incêndios florestais e com biopirataria internacional. Em 2007 o Parque Estadual da Serra Negra, uma das mais belas unidades de Conservação do NE do Estado, sofreu com a devastação de um incêndio florestal. Nada de tão aplaúsivel os governos, em sentido lato, estão fazendo. Porque levar nossos passarinhos, ainda que passarinho seja uma palavra muito gorda, e ai caiba coisas e interpretações as mais diversas. Ayuda a tu mundo, haz tu parte, ayude a esta ciudad.

Pedro
Itamarandiba-MG