terça-feira, 31 de julho de 2007

O detalhe.

Hoje voltei pela primeira vez à rua onde seu pai morava. Respirei fundo, acelerei e peguei o atalho que liga a nossa casa à casa que era do seu pai. Pelo caminho fui vendo as casinhas que a gente pensava em alugar. Um velhinho atravessava a rua, um menino bem pequeno se preparava pra soltar um papagaio. Tudo igual, no seu ritmo, como sempre foi. Só um detalhe: no prédio em frente ao qual estacionei o carro, não mora mais um tal Guilherme Fraga. Mas o sapateiro continua ali. Aliás, era ao sapateiro que eu estava indo. Deixei a bota pra colar a sola e conversei cinco minutos com o sujeito que sempre esteve ali. Naquele dia, como em tantos outros, contou o sapateiro, seu pai voltou do squash, saiu pra passear com os cães e voltou pra se trocar para depois ir trabalhar. O detalhe: naquele dia, ele não foi trabalhar. O bairro continua sua vida. A minha vida é que mudou com esse detalhe. A tragédia com o avião da Tam matou muitas pessoas, mas não fez diferença na minha vida. Seis meses antes, meu filho, não aconteceu nenhuma tragédia coletiva. Simplesmente um coração parou de bater - e isso fez toda a diferença na nossa vida. O seu coração batendo dentro de mim é que me manteve viva. Lembrei dos nossos planos de envelhecer juntos. E por um lado achei bom saber que seu pai não vai envelhecer, nem adoecer. Melhor assim. Tenho que acreditar que foi melhor assim.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Urgente.

Preciso lhe dizer, Francisco:
- que quando você aprender o que é pai, vai ter que aprender também o que é morte;
- que a morte é a única certeza da vida, embora a gente passe a vida inteira fingindo que ela não existe;
- que às vezes a vida inteira pode durar apenas 38 anos;
- que o mais importante é ter vivido 38 anos muito bem vividos;
- que quando o teste de gravidez deu positivo, antes de parar pra pensar eu sorri;
- que depois de parar pra pensar eu continuei sorrindo;
- que eu continuo sorrindo até hoje;
- que você me faz querer brincar de novo;
- que você fez o seu pai voltar a fazer planos;
- que, de uma certa forma, o seu pai já pegou na sua mão;
- que eu não poderia ter escolhido alguém melhor com quem ter um filho - e ele me dizia a mesma coisa;
- que o seu pai nunca se esquecia de cobrir a minha orelha quando íamos dormir - e com certeza ele nunca se esqueceria de cobrir a sua;
- que eu tinha uma urgência de amar e viver e estar perto do seu pai que hoje faz muito sentido;
- que eu sempre tive um medo danado do seu pai morrer;
- que é horrível ver acontecer justamente aquilo de que a gente tem mais medo;
- que você salvou minha vida.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

Ai, filho.

Se ao menos seu pai falasse comigo.

sábado, 21 de julho de 2007

Email 2.

De: guifraga
Data: 22 de novembro de 2006 10h46min3s GMT-02:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: É powerpoint, é piegas, mas você vai se emocionar.

Vc é o meu amor. o Cisco tb.


On 21/11/2006, at 19:40, Cristiana Guerra wrote:

Amor,

Que alegria ter você ao meu lado.
E um filho seu dentro de mim.

Email.

De: guifraga
Data: 10 de janeiro de 2007 16h6min4s GMT-02:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: amoooor

amooooooooooooor, só agora meu mail voltou a funcionar. desde ontem...

vc quer dormir comigo hoje, amorzinho meu?
estou com saudades de dormir pertinho de vc.

um beijo goshtoso, com meu ipod no ouvido.rs

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Laudo indeterminado.

Bem a cara do seu pai: descobrir a causa seria uma invasão de privacidade.

Repertório

Você já tem sua música predileta, Francisco. É "Don't be cruel", do Elvis.

Calendário.

Tem dias que são o seu pai, Francisco. Amanhece, o sol lá fora diz o nome
dele, o silêncio do sábado chora a sua ausência. E de repente tudo o que era
alegria vira um buraco. Tem dia que tudo o que andei se desfaz. E volta uma
tristeza aguda, a maior do mundo. Em dias como esses, só você faz sentido.
Porque você é a continuação da nossa história. Tem dia que o sol pode
brilhar lindo lá fora, mas é um brilho triste. Tem dia que nem chove, mas é
dia de choro. Volta e meia tem um dia desses. Mas tem sempre um outro dia,
filho. Foi você que me ensinou isso.

Dia dos Pais.

Tá chegando. É o caso de eu ganhar presente?

quinta-feira, 19 de julho de 2007

Bala Soft.

Engoli meu pai e minha mãe. Hoje sou os dois.

6 meses desde aquela manhã

A primeira vez que seu pai fez café da manhã pra mim, Francisco, ele trouxe
um ovo quente com torradinhas cortadas em lascas, dispostas no prato como
uma fogueirinha.

Seu pai cozinhava que era uma delícia. Mais gostoso ainda era ver o prazer
que ele sentia ao preparar um prato qualquer – mesmo um simples sanduíche.

Bastava parar ao lado dele e dizer que estava com fome para ouvi-lo
perguntando animado: “O que você quer comer?” E um simples ovo frito virava
a comida mais gostosa do mundo.

E não era preciso ser apaixonado pelo seu pai pra achar isso.

Ele era um cara presente nas pequenas coisas da vida. Não nos dias de festa,
tomando champanhe - no dia-a-dia mesmo. Mas se fosse preciso, ele também
providenciava o champanhe em plena segunda-feira à tarde.

Seu pai acordava cedo, olhava pro céu azul e comemorava. Sorvia cada raio de
sol fazendo alguma coisa simples, mas bem gostosa. Não passava um dia sem
dar um abraço quente em alguém. E nos raros dias em que tinha preguiça de
acordar, esperneava na cama feito criança. Você precisava conhecer o olhar e
o sorriso de criança que seu pai tinha. Vocês iam brincar horas juntos.

Papai e Mamãe também passavam horas rindo juntos. Cantavam juntos ao longo
de toda viagem. Faziam piada de tudo. Ríamos também nos emails que
trocávamos, nos telefonemas. Imagine, Francisco, que ele gostava de ver a
novela das oito com a Mamãe. Era delicioso fazer e falar qualquer bobagem
com ele, como também era bom ficar em silêncio. É que com o Papai a Mamãe
sentia aquela sensação quase de alívio que a gente tem quando encontra o
amor de verdade. Um dia você vai saber o que é isso.

O amor do Papai pela Mamãe, Francisco, fez parte da vida dela antes mesmo
da gente namorar: na geléia de morango que ele mesmo fazia, no queijo que ele
trazia pra Mamãe sempre que ia ao Mercado Central, no abraço de todo dia de
manhã, no jeito especial de ajudar a Mamãe no trabalho ou mostrar uma dica,
um caminho mais fácil pra fazer uma coisa qualquer. Seu pai era uma presença
que trazia delicadeza pra vida da gente.

A gente nunca morou juntos, mas brincávamos de casados de sexta a
domingo. E era muito gostoso.

Quando eu estava esperando você, com aquele barrigão, era seu pai quem fazia
supermercado pra mim. O último, eu me lembro bem: ao abrir as sacolas, entre
um item e outro da lista, encontrei chocolate, azeitonas pretas bem grandes,
biscoitos, frutas fresquinhas e o meu sorvete predileto.

O vidro de azeitona ainda durou muito tempo na geladeira, mesmo depois que
seu pai deixou esse mundo, me fazendo lembrar as palavras da sua bisavó
Juju: “Que absurdo as coisas durarem mais do que as pessoas”.

E acredite, Francisco: naquela manhã de 17 de janeiro, na minha geladeira,
tinha um pote de geléia de morango que ele sempre preparava pra mim. E foi
por volta das nove da manhã que eu comi a última colherada.

Ele me deu tanto amor, filho, que até a falta dele me deixou presentes.
Com ela eu descobri quantos amigos eu tenho. E a Mamãe, que sempre foi tão
independente, aprendeu a dizer “Preciso de você”. E não passa um dia sem ver
um amigo, sem falar ou ouvir uma palavra de carinho. Chama as pessoas de
queridas – e é sincero. Mamãe herdou os amigos dele e herdou também o amor
dele pelos amigos.

Pra Mamãe Papai deixou de presente uma família nova que, como você, ela
aprende a conhecer a cada dia. Que bom ter família de novo, meu filho. Que
jeito lindo seu pai encontrou de continuar vivendo.

Vejo você crescendo e penso em como o Papai ficaria feliz ao ver você tão
parecido com ele. Fico em dúvida se ele lhe daria banho ou trocaria fralda
de cocô. Se ele aprovaria as nossas escolhas, essas que faço sozinha. Mas de
algumas coisas eu tenho certeza, meu filho: ele adoraria fazer você dormir.
E chegaria mais cedo em casa pra ver você acordado. E levaria você pro clube,
pra passear no mato. E cantaria pra você.

Não consigo entender como seu pai desapareceu, mas também não sei explicar o
milagre do seu aparecimento, Francisco. Só sei que 2007 é o pior e o melhor
ano da minha vida.

Eu conto tudo isso pra você, meu filho, porque preciso contar pra mim mesma.
É que pra dar conta da morte a gente arranja uma espécie de esquecimento,
não da pessoa, mas da sensação que a gente tinha ao lado da pessoa. E eu não
quero esquecer seu pai, Francisco, porque quero que você o conheça bem.

Porque muito antes de o coração dele parar, ele ouviu o seu coração bater. E
chorou. Ele viu você desde que você só tinha sete milímetros até chegar a
uns trinta centímetros. E se orgulhou ao ver minha barriga crescer. E disse
que te amava, falando bem pertinho da barriga. E disse “Que gostoso!” ao ver
o seu pezinho no ultrassom. E gravou uma seleção especial de músicas
clássicas pra você. E desenhou a parede do seu quarto – mas achou que ainda
não estava à sua altura. E apertou junto ao peito as roupas e sapatinhos que
compramos pra você, chorando só de pensar na emoção que seria ver você
chegar. E parou de fumar, coisa difícil de se fazer, pra poder viver mais
tempo junto de você. Ele te amou muito, Francisco. Você nem imagina. E foi
muito mais feliz depois de saber que você existia.

Hoje estamos assim: Papai em algum lugar bem bonito e a Mamãe aqui,
nós dois a cuidar de você, filho, e em você o amor que nos une feito mágica.
Como ele mesmo dizia, a gente faz uma grande dupla.

Se era a hora de o Papai ir, você foi o jeito que Deus encontrou pra gente
continuar vivendo esse amor. Esse amor que não cabe.