quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A alma das coisas.

Uma caixinha pequena, com acabamento dourado e um espelho na parte interna da tampa, que ao se abrir revela o reflexo de uma bailarina rodopiando suavemente ao som de "Pour Elise". Este é o meu objeto favorito.

Além dele, uma plaquinha que encontrei entre as coisas da Vovó Juju depois que ela se foi, com os dizeres: "Em algum canto do coração, temos sempre vinte anos". Aquele poderia ter sido o seu epitáfio. Também por causa dela, tenho especial apreço por uma imagem de Buda em porcelana barata, que eu fitava em sua casa desde que me entendia por gente. Passei anos imaginando que aquela deveria ser uma relíquia valiosa. Depois de herdá-la, encontrei colada na base uma etiqueta do antigo supermercado CB Merci. No oco, descobri há pouco alguns algodões e um maço de notas de pesos argentinos – um verdadeiro tesouro, mesmo que já não valham nada.

Da outra avó, guardo cuidadosamente uma imagem de porcelana inglesa onde moravam meus olhos durante os almoços de Natal em sua casa: uma mulher e seu lago (seu próprio lago!). Gosto, não por ter sido da minha bisavó e pelo provável valor financeiro; gosto porque traz aquele encantamento da infância, e mais ainda porque minhas irmãs se lembraram disso ao me confiar o objeto, na hora da partilha.

Uma miniatura do Porsche 911, presente da Telida num dos meus aniversários, acolhendo minha paixão pelos carros. Com esse "carrinho", você sempre insiste em brincar. Não sem que eu sinta ciúmes — é que sempre desaparece uma das rodinhas, o que me põe em posições patéticas a procurar debaixo de camas e sofás.

Duas caixinhas ilustradas da Confeitaria Colombo, que um dia eu trouxe do Rio para o seu pai. Hoje, uma mora dentro da outra, na tentativa de guardar a sete chaves os cds de nossas músicas – e o tanto mais que os acompanha.

Um souvenir da Tour Eiffel que eu mesma comprei em Paris; uma miniatura de baú de viagem, toda etiquetada como se já tivesse rodado o mundo; um porta-termômetro dourado que meu pai ganhou na formatura de medicina e uma tacinha de licor que era para ele sua melhor lembrança da avó materna.

Se você prestar atenção, filho, vai descobrir que também já tem os seus objetos preferidos. E terá outros, ao longo da vida, que trarão lembranças, encantos, afetos, certezas, tremores. Algumas coisas têm essa sorte: tornam-se sinônimos das sensações que nos provocaram um dia. Sensações que escolhemos guardar. Por elas, ganham o privilégio de ter alma.

Dos meus, o mais vivo talvez seja a caixinha de música – que existe apenas na minha imaginação. Nunca a tive. Era sonho de criança ganhar uma de presente, mas não aconteceu. E é nessa caixa inexistente que a bailarina rodopia entre sonhos antigos e tolas esperanças, ao som de uma trilha simplória e abafada, que aí mesmo traz sua magia. Morando num invólucro que não existe, talvez seja mais fácil um deles um dia fugir e crescer. E eu particularmente torço por isso.

Feliz 2009, filho.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Um domingo.

Tive um domingo de enterro e festa.

O tio-avô, que para mim era a síntese da elegância e do humor, finalmente se foi depois de uma vida longa e de alguns últimos anos que não precisavam ser tão sofridos. Deixei você com sua avó, na correria, e corri para o velório lotado, onde, em meia hora, estive com dezenas de pessoas da família que raramente vejo, das quais quinze ou vinte encontraram um lugar especial em mim.

O tempo apurou meu afeto, e no olhar de cada um deles eu me lembro de uma presença preciosa em uma das minhas horas de falta, de um sorriso rasgado tentando me provocar a gargalhada. E entendo que, na correria de suas vidas, houve espaço para mim, como hoje há espaço na correria da minha para os filhos de quem agora se foi. E é nestes encontros esparsos que reconheço a matéria verdadeira do amor.

Eu estava chorosa, não só por saudade de alguém especial. Acho que o meu choro era de tempo. Um tempo que passa apontando silenciosa e timidamente para o que me parece ser a essência. Hoje, hoje, hoje. Não foi sem sofrimento que percebi esses sinais sutis. Mas posso dizer que a violência de certas faltas me trouxe a delicadeza que cultivo em lágrimas. Lágrimas, também, de alegria.

E então percebo que um enterro não é despedida, é celebração de vida, ritual menos necessário a quem vai e muito mais para quem fica. De novo, no confronto com a morte, a vida encontra sentido.

Do enterro, vou direto para um almoço de aniversário. E então vejo muitas outras pessoas que também têm abraço cativo em mim. A começar pela dona da festa, minha madrinha, em que sempre encontro uma maciez de mãe – talvez por ter sido tão amiga da minha.

Olho para sua vida: é um renascimento. Tantas pessoas e relações se foram, hoje tomo conhecimento. Tantas novidades aparentemente absurdas. Mortes e nascimentos, sempre.

Lembro de quando ela descobriu um câncer na tireóide. Na cena, minha mãe chorando por ela e meu pai com o seu ponto de vista médico: "Se ela viver até os 70 tá bom?" Lembro que esse assunto logo foi resolvido. Pouco tempo depois, foi minha mãe que não vi chegar aos 56, nem o meu pai aos 65.

Ela sorri. Está ali para comemorar seus 70 anos – não sem outros sustos maiores. Ela se reconstruiu, assim como muitos outros que estavam ali naquela festa, exalando uma alegria de amor.

E penso. Sorrio e choro de novo, depois penso em você. E corro ao seu encontro, pensando que, sim, este foi um domingo bom. E, sim, talvez eu tenha entendido.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Alegria, alegria.

Algumas pessoas são muito, muito delicadas. E a Leila está entre as minhas preferidas.

sábado, 13 de dezembro de 2008

Sem adeus.

Tenho sentido seu pai distante, indo embora de mim. Resisto à tentação de pedir que ele fique. Não devo - não devemos. É hora de ir e deixar em mim o que precisa ficar. Como eu previa, as lembranças já não são frescas. É uma alegria e um alívio ter escrito. Distante da intensidade, por vezes acho pouco o que sei dele. Que sorte haver amigos e amor para me mostrar um tanto mais. Inevitável: você também fará isso. Nesse tempo todo de falta, procurei o costume como saída. Fiz da ausência um hábito, até que ela virasse paisagem. Mas de vez em quando entra um vento de dor por uma fresta insuspeita, atingindo minha pele com um frio de tristeza. Talvez eu sinta para sempre esses arrepios como quem tem uma doença crônica. Um reumatismo de amor que de vez em quando finca e maltrata. Depois passa. E volta – não há como virar uma página que insiste em crescer de novo diante dos meus olhos. Que insiste em se reescrever. Sei que você me é também, mas, como não me assisto de fora, não me reconheço. Talvez ele o fizesse. A esse paradoxo que me foi legado, dou o nome de sorte. É que ele não foi embora sem antes cuidar de renascer em mim.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Do alto da minha ignorância.

Não foi nenhum livro que eu li. Não foi nenhum filme que eu vi. Foi o que me foi dado a viver e o caminho, o único, o que encontrei para respirar. Foi a minha ignorância. Minha não pretensão, o meu não julgamento e uma lente de amor a distorcer (ou revelar?) a poesia. Antes de ser dúvida, já era texto, já era lido, já era. Arte por ser expressão legítima do que o coração gritava. E assim, inteira, absolvida pela ignorância, cometi a simplicidade de dizer o que sentia. Fiz, sem saber que a sinceridade era um atrevimento. E acho que vai ser sempre assim.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Quer ganhar um exemplar do "para Francisco"?


A Letícia Nogueira, do blog etc., está fazendo a gentileza de sortear um exemplar autografado do livro "para Francisco". Vai lá pra concorrer. E aproveite pra conhecer um blog bem bacana. Letícia, não poderia haver incentivo mais bonito. Obrigada.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Voar.

Eu tinha 11 ou 12 anos quando recebi dos meus pais um inédito convite a viajar com eles para Salvador. De avião.

Caçula de cinco irmãos, a alegria de voar pela primeira vez ao lado deles só não era maior que o orgulho de finalmente ter a companhia de pai e mãe só para mim. Talvez aquele tenha sido o primeiro grande evento da minha vida.

Anos antes, eu me lembro do tamanho da frustração quando eles viajaram para Diamantina levando todos os filhos para ver a Festa do Divino – todos, menos eu. Não me esqueço da perna engessada do meu irmão, que voltara com a assinatura do JK, em pessoa. (Embora fosse amigo do meu avô, a figura de Juscelino, aos meus olhos, era uma espécie de astro de Hollywood.)

E lá fomos nós voar de Vasp pra Bahia. Eu na janela, Papai e Mamãe ao lado. Emoção na decolagem. Prazer em cada minuto. Breve escala em Ilhéus e. E.

Ali a aeronave teve sérios problemas técnicos. Dali não mais saiu.

Descemos, esperando que o problema fosse rapidamente resolvido. Mas o que foi rápido foi a voz do meu pai a me rotular de "pé frio". É claro que era uma brincadeira, mas, nos meus dias de pequena, tudo para mim era grande demais. Foi preciso tempo e falta para me mostrar o tamanho que as coisas deveriam ter.

Ainda rio ao me lembrar do aeroporto de Ilhéus – mais abafado lá fora que lá dentro, mesmo sem ar-condicionado. Lembro também de uma tripulação a fazer os passageiros de bobos, ao nos mandar embarcar, dar voltinhas no solo com o avião e novamente nos mandar descer. Isso aconteceu por duas ou três vezes e na última delas alguém resolveu embarcar pela fila de desembarque – uma forma de tornar ainda mais divertida aquela cena patética em um aeroporto que parecia abandonado.

Constatada a impossibilidade do conserto, seguimos de ônibus para Salvador, não sem antes passar uma noite na parte menos charmosa de Ilhéus, indo dormir num hotel idem. Ainda assim, no nosso pensamento classe média, era divertido poder comer muito camarão pago pela Vasp.

Uma semana em Salvador, praia e alegria na casa do melhor amigo do meu pai e, surpresa: a volta seria pela Varig.

Ainda hoje nos vejo a sobrevoar o mar escuro, numa noite bonita de verão, enquanto um lauto jantar nos era servido – um bife alto e bonito, cujo gosto sou capaz de sentir até agora. Um vôo noturno triunfante e inesquecível. Aquela, sim, era a minha primeira vez voando.

Foi durante esse "jantar" que vivenciei a primeira turbulência em um avião: meu braço chacoalhava segurando o copo cheio de refrigerante. Eu vivia a cena ao mesmo tempo em que a assistia, incrédula. E a minha gargalhada era de uma felicidade inesquecível – ainda posso ouvir as risadas dos meus pais, felizes por mim.

Quase trinta anos se passaram e o que ficou foi essa cena – em slow motion. Em minha mania de transformar cada lembrança em um comercial de 30 segundos, aquela imagem é a idealização da minha felicidade ao lado dos meus pais. Se tivesse assinatura, seria da margarina Doriana.

O tempo se foi e, com ele, alguns aviões, passageiros, meus pais, minhas avós, seu pai. Até a Vasp se foi também. E parece que a Varig se foi agora, definitivamente, ao ser encampada pela simpática e básica Gol.

A malinha que a gente adorava levar pra casa ou ganhar de quem havia voado ficou no passado. E o máximo que podemos saborear no avião é um biscoito recheado com um vulgar patê de ervas. Servido, quando muito, com um belo chá de cadeira.

Já perdi as contas de quantas vezes voei. E hoje o que levo a mais na bagagem é uma grande torcida para tudo dar certo e voltar inteira para estar com você, filho. Viajo sempre com um coração pequeno e um olhar nostálgico para o mundo.

Aeroportos têm o poder de me fazer chorar. Assisto de longe ao significado do amor em cada abraço. Ali desaparecem as diferenças, o tédio e até aquelas coisas pequenas que no dia-a-dia crescem e passam a incomodar. O sorriso é fácil e aberto, o afeto é inteiro. Como expectadora, posso sentir o perfume do amor em cada cena. É nas despedidas que ele fala mais alto.

Viajando, me sinto mais e menos só: um mundo de gente que não me conhece me obriga a fazer companhia para mim mesma. E então se manifesta a essência da palavra solitude: a presença de si mesmo, muito diferente da falta do outro, a que chamamos solidão.

Viagens também podem ser uma chance de se abrir. Mas para isso é preciso coragem. Uma semana atrás, no aeroporto internacional do Rio, fiz amizade com um professor de história, que vive entre Brasil e Portugal, e com a simpática secretária municipal de assistência social aqui de Belo Horizonte. Embarquei num longo papo com cada um, viajando em nossas histórias de vida e de profissão – e então o atraso do vôo virou ganho.

Como aconteceu naquela viagem de avião para Salvador, em que a família era meu pai, minha mãe e eu, sair do conforto de casa nos faz experimentar uma nova dinâmica nas relações. Ali, por alguns dias, fui filha única.

Um ou dois anos depois, tivemos uma segunda oportunidade de ir apenas os três para Salvador. Dessa vez, fomos de carro. 24 horas na estrada, com direito a dormir num hotel bom no meio do caminho. O avião não me fez falta. Não houve vôo mais emocionante que estar todo esse tempo na estrada somente com meus pais. Como bons e velhos companheiros de viagem.

Antes que eu me esqueça.

Para entender melhor o seu pai:

- De fato ele era fisicamente muito parecido com o ator João Miguel - mas garanto que cozinhava melhor que ele no filme "Estômago";

- Ele às vezes se parecia com o Didi Mocó - e já admitiu isso pra mim;

- Quando ele envelhecesse, ficaria a cara do Bill Murray.

Bom, é mais ou menos isso.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Caixinha.

A vida tem surpresas maravilhosas. Hoje encontrei uma delas no site do escritor Thales Guaracy.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Aprendizado de hoje.

Algumas coisas não precisam ser ditas.

sábado, 29 de novembro de 2008

Mais do novo.

Saudade de escrever, filho. E agora vem a reforma ortográfica. Acho que houve outra em 1971. Eu tinha um ano, então já fui alfabetizada de acordo com as novas regras. Com você vai ser igualzinho. A mamãe aqui é que vai ter que se alfabetizar de novo. Assim seja. O livro, o tempo, o vento, a chuva. Até a reforma veio em boa hora. Novo tempo, filho. Tempo de aprender e começar de novo.

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Mais uma vez, obrigada.

Um dia precisei gritar para o mundo o que eu sentia.
Ontem tive certeza: o mundo ouviu.

Muito, muito, muito obrigada.
A cada um que recebeu o blog e o livro de braços abertos.

sábado, 22 de novembro de 2008

Te vejo em São Paulo.


Muitas pessoas perguntam onde encontrar o livro para Francisco. Explico: o livro foi editado por um selo da Editora Saraiva, por isso ele pode ser encontrado atualmente, com certeza, nas livrarias da rede, virtuais e físicas. Mas a Saraiva é uma grande distribuidora, que cobre todo o Brasil. Então é só uma questão de tempo. Após o lançamento, o livro vai aos poucos sendo encomendado por cada livraria e pode ser encontrado em lojas de todo o país, virtuais e físicas, grandes e pequenas. Ele já pode ser encontrado, por exemplo, na Cultura, na Fnac e na Siciliano (que na verdade é da rede Saraiva). Se na sua livraria predileta você não encontrar o livro nos próximos dias, peça. Se eles ainda não tiverem feito sua encomenda, podem fazer um pedido na Editora Saraiva.

Algumas matérias legais que saíram sobre o lançamento do livro:

Ilustrada.

Jornal O Tempo.

Revista Paradoxo.

Monovolume.

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Linda.


Ela, sim, herdou uma dor maior que a minha. Ainda assim, me ligou no mesmo dia e disse com voz firme: "Não saia de perto, você é nossa". E assim se fez. Freqüento aquele sorriso todo fim de semana. E para nós, filho, ela abre os braços, além do sorriso. Não falha – mesmo ao falar dos sorrisos que a vida não lhe dá. Mas ontem a gente sorriu num abraço forte. Era alegria, sim. Alegria de amor.

(foto Elisa Mendes)

domingo, 16 de novembro de 2008

Para contar a história de uma história.

Sensibilidade é uma virtude. Depois da minha conversa com a Michele Borges da Costa, do jornal O Tempo, eu já esperava que a matéria seria bem escrita. Ainda assim, ela conseguiu me surpreender. O texto, as fotos, tudo. É uma alegria ver a nossa história contada com tanto cuidado.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Belo Horizonte ou São Paulo? Você escolhe.



Não precisa de convite impresso. Só precisa ir. O livro estará à venda no local, à vista ou no Mastercard. Vou estar lá esperando. De braços abertos e caneta em punho.

Obrigada, leitor.

É incrível como a sua manifestação me faz crer que o livro tem para você um significado tão grande quanto tem para mim. A cada leitor do blog que acolheu o livro, muito obrigada. E que alegria saber de cada pessoa que gosta do livro, tanto esteticamente como em seu conteúdo. Quando eu digo que foi o trabalho mais amoroso que já fiz na vida, tenho que acrescentar que a Fabiana Medina, editora que cuidou pessoalmente do projeto, colocou todo o amor dela também. Só tenho a agradecer, de novo.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Alguém como você.

Olha, filho. O pai da Renata morreu uma semana antes de ela nascer. Hoje ela já está adulta, mas sabe pouco sobre o pai. Olha a carta que ela escreveu pra ele.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

As coisas engraçadas da dor.

Existem aniversários que não merecem comemoração. Para mim, filho, hoje é uma data importante e triste. A vida da gente muda demais quando a gente se separa definitivamente da mãe.

Ainda assim, sempre me lembro de um caso engraçado do dia 7 de novembro de 1994. Mistérios que nos ajudam a seguir em frente.

Se a mim impressionava o fato de minha mãe ser enterrada no mesmo túmulo do pai, que ela não chegou a conhecer, merece destaque o caso dos coveiros tentando tirar uma planta que enraizou bem onde fica o túmulo, antes do enterro. Foi um primo quem assistiu à cena. Num determinado momento, um deles jogou para cima um objeto que parecia ser uma tampa de crânio e gritou: "Lá vai o côco!". Melhor foi o comentário do meu primo: "Acabei de conhecer meu avô", disse acompanhando o movimento do bizarro objeto.

Lidar com a dor diariamente faz com que ela não se pareça tanto com dor. Ou seria impossível ser coveiro. E muitos são, filho. Muitos não têm outra escolha.

Sete anos depois, no enterro do meu pai, lembro da Tia Telida deparando com uma caixinha de metal ao lado da cova aberta. "É o seu pessoal?", perguntou apontando para a caixa. Era. E estariam ali "reunidos" para que no túmulo coubesse mais gente da família. Por mais trágico que isso pareça, é a frase que fica na memória. E ao contar o caso, multiplico o riso.

Também me lembro dos próprios, seu avô e sua avó, fazendo graça em muitos momentos difíceis. Talvez tenha aprendido isso principalmente com meu pai — e agradeço.

Horas depois de constatar a morte do seu pai, eu me lembro de chegar em casa e comentar com os amigos: "Já posso dar um depoimento em Páginas da Vida". É que eu e seu pai assistíamos a uma novela da Globo em cujos capítulos havia sempre, ao final, um depoimento de alguém que tinha passado por algo muito, muito difícil. Como imaginar que meses depois eu estaria em situação tão absurda quanto as que eu via com ele na TV. No mesmo dia, eu me lembro de ter dito também: "Pois não é que ele arrumou um jeito de não ter que trocar fralda de cocô?" Nem eu me reconheci ao ser capaz de fazer graça naquele momento. Mas que outra escolha eu tinha?

Lembro também da sugestão de um amigo diante da minha indignação: reclamar com Deus algo do tipo "Por favor, me chama o seu gerente!". Ouvir isso, de certa forma, ajudava a aceitar minha frustração. A piada do meu amigo era só a prova de que ele havia conseguido se imaginar no meu lugar.

Nem um mês depois, o chá de bebê foi para mim o primeiro grande confronto entre alegria e tristeza. Era ainda muito recente a ida do seu pai mas, ao mesmo tempo, era dia de festa: não podíamos deixar de comemorar a sua chegada. Mas foi impossível não notar que quase todas as pessoas chegavam com um pacote de fraldas ultra-mega-max reforçado — o que na verdade era uma grande vontade de trazer seu pai de volta. Cadito, grande amigo do seu pai, não se contentou em trazer apenas fraldas. Incluíu no pacote algodão, escova de cabelo, luvinha pra limpar os futuros dentinhos, forro para o trocador e outros mimos de que não me lembro mais. Naquela enorme sacola tinha uma vontade de me colocar no colo, filho. E não foi preciso ele me dizer isso.

Outro dia me lembrei de outro personagem da nossa história: o salmão. Nos últimos dois meses da minha gravidez, era ele o cardápio escolhido pelos amigos que chegavam em casa, amorosos, levando os ingredientes para o almoço. Isso se repetiu por umas três ou quatro vezes, variando os amigos, mas nunca o salmão. O que é lindo, não fosse o fato de eu não gostar de salmão. Comia, sorridente. Porque a delicadeza do gesto era o grande tempero. Poucos daqueles amigos souberam depois sobre a minha não-afinidade com o tal peixe. Mesmo porque, ao longo do tempo acabei por achá-lo um peixinho até gente boa.

O amor é cor de salmão, filho. E o humor é a lente suave a impedir que a realidade ofusque os nossos olhos.

Talvez por isso eu insista em trazer comigo lembranças engraçadas dos dias mais difíceis da minha vida, aqueles em que eu estava diante da perspectiva de um longo período de tristeza.

Rir não é alegria nem tristeza. Gargalhada não é sorriso. É um respiro no meio de tudo, um respiro muito bem pensado. Talvez para tomar fôlego e continuar o caminho.

Comigo acontece sempre: estou sentada à mesa e bato o joelho sem querer no tampo ou num dos pés do móvel. A dor é tamanha que começo a gargalhar. E a dor chega a não parecer dor.

Já reparou, filho? Acho que ainda não. Mas você ainda vai aprender, Francisco. E vai me ensinar muito também.

sábado, 1 de novembro de 2008

A chuva.

Quando os primeiros pingos caíram, naquela tarde de sábado, você olhou para o céu admirado: "A fuuuuuuva!"

Isso faz uma ou duas semanas.

Num desses dias você aprendeu o que é trovão, observando os raios e a água caindo, com um olhar de respeito, como se soubesse da sua pequeneza diante dela. Sua voz ficava até mais suave na hora da exclamação.

Essa noite ela veio de novo. Dias e dias de um calor abafado e assustador e o prenúncio da sua chegada é um vento forte que nos faz fechar todas as janelas e suportar a alta temperatura dentro do apartamento.

Eu tinha acabado de me deitar quando ouvi você dizer baixinho "A suva, a suva." Fui até o seu berço e não resisti aos seus braços pedindo que eu o tirasse de lá. Depois de uma semana de trabalho duro, a saudade fala mais alto.

E eu só tinha me entregado à cama por saber que não agüentava mais. Mas ao ver você minha exaustão dissolveu feito pó. Só importava abraçar e dizer: "Estou aqui".

Fiz um embalo com o corpo, você deitado no meu ombro como de costume, quando a chuva de fato começou. E um relâmpago assustador acendeu o céu por um instante, seguido de seu som que, você vai aprender um dia, sempre chega mais tarde. Foi um estrondo, filho. Um que me pegou de surpresa. Meu corpo estremeceu, abraçado junto ao seu, e tive medo de assustar você com o meu próprio medo.

"Tuvão, tuvão", você repetia, pequenino.

Disfarcei, respirei fundo, recobrei a serenidade como num piscar. Nessas horas, não importam as coisas que me amedrontam, nem os colos que me faltam. Visto uma armadura de não-sei-o-quê, engulo o tremor e calo a minha ingenuidade. Aperto você junto ao meu corpo como se quisesse voltar a colocá-lo dentro de mim. Sou seu porto-seguro porque assim tem que ser.

Foi então que eu, pequena e uma só, cresci mais uma vez para acolher você com a força de um mundo.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Para você.



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segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Do amor.

Não tenho a fórmula, filho. Aprendi algumas coisas, muitas delas ao lado do seu pai. Aprendemos juntos também. Tivemos tempo para cuidar. Ficou um amor fresco, onde preservamos o melhor e nos preservamos do pior. Não seria assim tão fresco com o tempo passando, a vida, dia a dia. Mas a gente estaria atento para aprender mais. Às vezes sinto que essa interrupção, por outro lado, foi um sinal bonito. Para que o amor ficasse, ali ele deveria parar. O cara lá em cima deve ter resolvido fazer como a minha psicanalista, que sugere, no ponto alto da sessão: "Vamos ficar por aqui?". E foi assim. Mesmo tendo tanto ainda a dizer.

sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Para você, leitor.

Se você mora em São Paulo, capital, por favor responda à enquete que está aqui do lado esquerdo sobre o lançamento do livro. Peço a você muita sinceridade, pois as respostas vão nos ajudar a tomar uma decisão. Muito obrigada!

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Cada um no seu papel.

Ontem me senti muito culpada por não poder ficar com você por mais tempo de segunda a sexta. Minha vida já seria uma correria só pelo trabalho e ultimamente tanta coisa tem acontecido além dele. Que contradição: é muito por você que fico tanto tempo longe de você. Na verdade, filho, no fim de semana eu sou cem por cento mãe. Mas durante a semana, eu sou o pai. E chego do trabalho bem cansado.

sábado, 18 de outubro de 2008

Escrevi um livro para você, filho.

Eu me lembro que faltei ao trabalho por uma semana depois da morte do seu pai. Não fiquei em casa chorando, pois não havia tempo. Eu imaginava que, por causa do baque, você pudesse vir mais cedo que o previsto. Então o tempo de que eu precisava para me acostumar com aquela nova realidade foi usado para apressar os preparativos para sua vinda.

No dia seguinte ao enterro, acordei com o Tio Dani e fomos comprar um móvel e outras coisas que faltavam. Uma mulher grávida andando de mãos dadas com um homem, comprando coisas para a chegada do seu bebê seria uma futura mãe como todas as outras, não fosse a dor que eu carregava dentro de mim – e ela pesava muito mais que você.

De volta ao trabalho, era difícil acreditar. Meu corpo estava presente, mas a alma ficava vagando. Meu coração estava confuso. Foi preciso um bom tempo para que eu voltasse a sentir as coisas, para que eu de novo procurasse o meu lugar.

Eu observava as pessoas como uma extra-terrestre. Nada fazia sentido. Um colega nervoso por causa da lentidão de um computador me parecia uma cena absurda. "Será que ele tem idéia de que eu mal consigo respirar?", eu costumava pensar. Nada, ninguém, nenhum assunto ou urgência tinha significado diante da minha perda.

É normal que a gente se sinta assim, como se tivessse o maior problema do mundo. O maior problema é sempre o nosso, pois somos nós que temos que resolvê-lo. E o meu problema não era a morte, pois para ela não existe solução. Meu problema era conseguir disfarçar minha própria ausência.

Entrar em uma reunião, sorrir para o cliente e fazê-lo acreditar que eu estava mesmo interessada em seu aumento de vendas era exercício de atriz. E por uma questão de sobrevivência, eu precisava encenar aquela peça quantas vezes fosse necessário, até que viesse a licença-maternidade como uma redenção. Licença que me foi interrompida por um empresário que tem mais amor ao dinheiro que às pessoas. Mas esta é outra história.

Para dar conta de tudo isso, escrevi. Mas era com o seu pai que eu "falava", como se as folhas de papel fossem colocadas numa garrafa que um dia pudesse alcançá-lo do outro lado do oceano. Às vezes, era mesmo um pedido de socorro.

Ao mesmo tempo, a proximidade da sua vinda era a perspectiva de virar uma página e finalmente começar a leitura de uma história mais leve e alegre. Como acabar de assistir a um drama, buscar a pipoca e, enfim, ver os primeiros letreiros de uma comédia romântica. Agora viria a parte boa.

Você nasceu, alegria e tristeza sublimes em mim, fomos crescendo. Aos poucos eu ia aprendendo a ser mãe e acomodando a saudade até que ela doesse com costume, até que ela não me aterrorizasse mais. E a escrita foi abrandando.

Você tinha quatro meses quando lhe escrevi a primeira carta. Quando entendi que era para você que eu precisava falar. Você, sim, leria tudo algum dia. Minha mensagem chegaria ao seu destino. Transformando a dor em escrita, impedi que ela engolisse a minha alegria de ter você. Ao falar com você eu também estava falando com o seu pai. E ao falar do seu pai eu também estava falando de você. Eu precisava fazer minha mensagem chegar até você em algum ponto do futuro - e publicá-la ao longo do caminho era o combustível.

A escrita encontrou eco – para algumas pessoas foi espelho, para outras foi consolo, para muitas é lição. Para mim, o tempo todo, foi cura. Entender que a minha dor, aparentemente inédita, falava tanto para tantas pessoas. Entender que somos feitos do mesmo, todos nós, fora algumas desumanas exceções. Entender que estamos juntos.

E foi assim que passei a ter a disciplina para escrever. Estava firmado um compromisso. Talvez, filho, sem que as pessoas me lessem, eu não tivesse continuado a escrever o que acima de tudo era para você. E continua sendo para você. Foram essas pessoas que me estimularam a continuar, sistematicamente. Abrir as caixas e degustar cada lembrança, para que aquilo tudo não virasse pó.

Escrevi um livro e para mim ele tem um grande significado. Um livro abriga uma história e a eterniza. Um livro é memória e independe da presença de quem o escreveu. Um livro é um contador de histórias. Este livro fará o seu pai chegar até você como a garrafa com o bilhete, atravessando o tempo e o oceano. E fará a nossa história chegar a muitas pessoas, sem que entre nós precise haver uma proximidade de tempo, espaço ou conhecimento. Um livro é generoso. Como um filho, um livro é para o mundo.

É que eu amava o seu pai demais, filho. E eu te amo demais também.



Imagens: arquivo pessoal. Edição de José Carlos Mauricio e trilha sonora de Flávio Guerra, a quem agradeço de coração. Obrigada também a Michel Montandon, Elisa Mendes, Daniel de Jesus, Cristina Cortez e Marcos Pina.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Mais cedo.



Desperto com um som que meu coração diz ser de pássaros. Pela janela, vejo os micos a pular de árvore em árvore. Você também desperta com o som e, da minha cama, assistimos às suas macaquices. Saio mais cedo para ir ao dentista e encontro um sol palha – um sol fresco e silencioso que me traz um gosto doce na alma. As manhãs são combustível, filho. E essa pressa vem tapando meus olhos. A pressa mata as manhãs. Antes de sair, por alguns minutos me permito observar você na porta de casa. Um jato de água da mangueira é magia entregue às suas mãos em preciosos espaços de vinte segundos. Felicidade é quase nada e o seu sorriso muda tudo. Esqueço a luta, paro de remar e bóio. Flutuo na água da vida a me lembrar da intensidade diversa do que já senti. De quando éramos um só. De quando éramos três. Penso na cura que a morte traz. Simplesmente continuar a vida, manhã a manhã, sem sofrer pelo que não tenho. Desejos outros. Saudade daquelas manhãs em que doía a paixão; desejo por novas manhãs assim. Hoje os pássaros cantam, sussurrando um novo dia ao meu ouvido. Ou os micos. Ou você. Meu passarinho. Quero um novo pai para você. Ou para mim? Quero e para isso nada faço. Nada espero para que assim, um dia, me venham surpresas boas. Penso no resto da minha vida e na minha chance aumentando de viver esse resto com alguém – esse que é a cada dia mais curto. Penso, coloco o talão rotativo no carro e deixo para depois. É hora do dentista.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

De sol a sol.

Era um dia de sol e eu decidi ir de amarelo. Como eu vinha fazendo nos últimos meses, fiz minha foto ainda de manhã, usando o tripé que ele havia colocado num ponto da sala, e que morou meses por lá. O fundo era a parede com a fotos dos meus pais. A cara era de sono, sim, mas isso não tinha importância. A barriga é que contava. Você crescendo era milagre que precisava ser registrado e disso cuidamos com entusiasmo. Algumas vezes ele estava por perto, outras não. Algumas vezes eu estava indo pra hidroginástica e tirava a foto de biquíni. Noutras, eu só me lembrava da foto no fim do dia, antes de dormir. Por várias vezes a câmera, com que eu ainda não tinha tanta intimidade, tirava muitas fotos seguidas, registrando movimentos, suspiros, caras e bocas. Foi assim quando resolvemos experimentar as roupas de banho que compramos antes das férias na praia. Ficou o registro daquele humor, daquela alegria. E assim se seguiram fotos quase diárias. Naquele dia, não falhei. Outras coisas é que me faltaram. Não foi um dia como todos os outros. Ainda assim, acordei no dia seguinte e me fotografei novamente. Eu tinha motivos para olhar para frente, filho. Você continuava crescendo em mim. Há muito eu queria montar esse vídeo que era um desejo nosso, meu e do seu pai. A música não poderia ser outra: a que ele me mandou por e-mail, um dia, por uma brincalhona sugestão do Marcelo Henrique – e cuja letra, depois do desfecho, passa até a fazer sentido. Hoje, o vídeo nasceu pelas mãos do meu amigo Zé. Obrigada, Zé, por mais esse carinho.



Trilha: "Você é linda" - Roberto Carlos

sábado, 11 de outubro de 2008

Suspeita.

Desconfio que envelheci. E talvez envelhecer seja saber escolher. Algumas coisas, não topo mais. Como sair de uma festa escura e esfumaçada me sentindo estranha por não ter ficado até alta madrugada. Não preciso provar mais nada pra ninguém. Nem pra mim mesma. Saudade, filho. De gostar de ficar quieta. Saudade da temperatura do amor. De paz, calmaria e preguiça. E uma vontade de acreditar que existe alguém assim, como eu, em busca de alguém assim, como eu. Talvez pensando agora sobre a mesma falta. Então vou fazer um desejo bom pra esse alguém e vou dormir o sono dos justos. Para amanhã acordar feliz, embora exausta, diante do seu sorriso inquieto e guloso.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Do começo.

Eu me lembro de ter pensado nisso naquele dia. Que ele nem tinha chegado aos 40. Para mim ele era tão homem, no sentido mais amplo da palavra, que é como se tivesse mais que isso. Houve um tempo em que ele adotou uma brincadeira para parecer mais novo. Se alguém perguntava a sua idade, ele dizia “Quarenta e três”, para que a pessoa dissesse que ele não aparentava tanto – e assim ele ria de si mesmo, se sentindo mais jovem.

Naquele dia, demorei algum tempo para me lembrar que ele tinha apenas 38 anos. Achei absurdo. Como se tudo em volta já não fosse.

Quase dois anos se passaram – e cabe muita coisa em dois anos. Mas ele não passa. E por ter deixado você, está a cada dia maior. Já me acostumei a ver seu pai crescendo outro na minha frente, a reconhecê-lo em seus trejeitos, como também a freqüentar a casa em que ele se criou, a conviver entre os seus. E no meio de todos esses sentimentos que aprendi, houve caminho para aprender novas pessoas, sorrir outros sorrisos e agradecer por tudo o que tive e tenho.

Há meses já não lamento sua ausência e nem vivo sentindo pontadas de saudade. Mas hoje ele faria 40 anos e disso não posso me esquecer.

Não devolvo meus últimos 20 meses de vida, não os quero outra vez ou de outra forma. Mas eu vivi esses últimos 20 meses cheios de você. Ele não. E isso vai doer sempre, filho.

sábado, 27 de setembro de 2008

Valores.

De vez em quando ele fazia o carinho de colocar duas notas de cinqüenta no meu bolso, aliviando o meu fim de mês, mesmo que no próprio bolso sobrasse apenas uma. E ao ver minha expressão entre o alívio e a tristeza de chegar a esse ponto – não por ganhar pouco, mas por gastar muito –, citava a avó: "Senão o cachorro faz xixi no seu pé, amor." E assim ele me arrancava um sorriso. Também pude fazer por ele algumas vezes, e o fazia com prazer. No dinheiro também estava o amor. Um jeito bonito de misturar as coisas, preservando os desejos e escolhas do outro. Não era hoje eu, amanhã você, mas o correr natural dos gestos e a alegria de dar o amor na forma em que ele viesse: fosse em nota de dinheiro, beijo, telefonema ou pedaço de pão. Nunca, nunca vi seu pai me recriminar por alguma compra. Ao contrário, eu ia correndo mostrar cada peça especial que eu havia encontrado e ele me devolvia um elogio pelo bom gosto, um sorriso de me ver bonita porque aquela também era a minha forma de amor. Amor que não estava no quanto cada um ganhava ou no dividir ou não a conta. Nem na conta conjunta que nunca tivemos. Amor de estar ali ao lado sempre, num desejo só, e aí se incluem os desejos que são de cada um. Quase sempre dava pra viajar pra pertinho, pegar um cinema, tomar um vinho ou fazer um jantar simples, não importa de que lado ou dois ou quanto viesse o dinheiro. E se não houvesse nenhum dinheiro, juntos estávamos em uma de nossas casas. De geladeira vazia e sorriso cheio. Acho que fiquei mais generosa convivendo com ele. Sinto que você vai ser assim também. E vai poder dizer: "Aprendi com meu pai".

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Para quem tem uma boa idéia.

Você tem uma boa idéia para ajudar uma ou mais pessoas? Olha que legal. Espalhar por aí já é uma boa idéia.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Mamãe vai trabalhar.

Aceno dizendo "eu te amo" e você me devolve um sorriso cheio, apertando os olhinhos para se proteger do sol. Todos os dias, esse seu olhar do seu pai. Que outro final feliz essa história poderia ter?

sábado, 20 de setembro de 2008

Mundos.

Já temos um código, eu e você. Coloco um CD pra tocar e você imediatamente pula no meu colo como se aquele fosse um convite pra dançar. Nem sempre é, mas eu nunca resisto. Não importa o que eu tenha pra fazer, acabo me entregando. Já imagino a cena: você no meu colo, aos 12 anos, minha coluna doendo e o coração feliz da vida.

Não é tão fácil construir afinidades com alguém, filho. Existe um caminho, uma conquista. Eu e você soubemos criar o nosso mundo. Temos coisas que gostamos de fazer juntos. Momentos em que não precisamos dizer nada um para o outro e o mundo acontece. Você também tem os seus com a Vovó, com o Vovô, com a Zezê — e é feliz assim.

Eu pensava que seria diferente. Mas não me vejo querendo tomar para mim suas horas mais importantes e felizes. O primeiro dentinho, o primeiro passo, a primeira palavra. Sabe-se lá quais foram os seus primeiros. Para mim, não importa. Se algo faz você feliz, me faz também e pronto. Não quero medalhas em mim, mas sorrisos em você. Mesmo que eu não os veja o tempo todo.

Também construo mundos com outras pessoas. E é bom que seja assim. Tenho com Elisa um mundo de imagens cotidianas. Com o Dani, um mundo de segredos e passos. Com a Telida, humor e silêncios. Com cada um que me cerca construo um ou vários pequenos mundos onde não vemos o tempo passar – e então a vida parece fazer sentido.

Com o seu pai eram muitos. Fique atento, filho: quando acontece de encontrar a cada dia mais mundos com alguém, costuma ser amor.

O som ligado e nós dois a passear pela sala, você com a cabeça entregue ao meu peito, os olhos livres e o meu pensamento dançando também. Esse é o nosso mundo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Você, hoje.

Acordou, sorriu pra mim, veio para o meu colo, olhou para a foto acima do trocador e disse com gosto: "Papai". Há alguns dias aprendeu e vem repetindo esse som fácil. "Papai, papi, papi, paaaaaai." Diga sim, filho. Diga que essa palavra é bonita demais. Fale à vontade, que a nossa conversa apenas começou.

sábado, 13 de setembro de 2008

Até o fim.



Foi seu pai quem me apresentou Madeleine Peyroux. Um dia cheguei na agência e encontrei na minha mesa uma cópia do primeiro CD dela. Natural ele ter se apaixonado: aquele som traduzia como poucos o seu jeito de amar e viver.

Mas, diferente do Jack Johnson, a voz dela me soava intensa demais. Talvez porque o disco tenha entrado na minha vida naquele período em que eu e seu pai não estávamos juntos nem separados. Encontrar a gravação na minha mesa falava do amor dele, mas outras atitudes diziam o contrário.

Era uma noite namorando ao som de “J’ai deux amours” e no dia seguinte um silêncio triste a nos convencer de que ainda não era a hora de ficar juntos. Madeleine parecia cantar por mim a urgência de estar com seu pai, como se eu soubesse mesmo que algo estava prestes a acontecer. A voz dela chegava aos meus ouvidos carregada de uma angústia que me tirava o ar.

Agora, que já não há mais o medo de perder seu pai, faço o exercício contrário de tentar despir as músicas daquele significado. Porque, como o Jack Johnson, Madeleine Peyroux merece ser ouvida.

Mas foi há poucos dias, ouvindo “Dance me to the end of love”, que eu finalmente notei um verso da letra: “Dance me to the children who are asking to be born”.

É verdade. Foi mesmo por você, Francisco. Dançamos jazz, rock, samba, bossa nova. Separados, juntos, olho no olho, de rosto colado no meio da sala ou sozinhos, sentindo a falta um do outro. Dançamos e dançamos esse amor intenso que queria você.

Faz sentido tudo ter começado numa pista de dança. Cabe a nós dois, filho, continuar essa coreografia.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Para você, Francisco.



Para você, não existe nada mais importante que as flores. Já faz um tempo que você descobriu a primeira e desde então nunca mais parou de falar sobre isso. Uma flor desvia a sua atenção, interrompe qualquer choro e coloca um sorriso doce no seu rosto. Plantas bem verdinhas também são flores para você, por mais que eu insista em explicar que não é bem assim. Você também travou grande amizade com o alecrim que temos plantado na nossa microvarandinha. Toda hora você vai lá dar uma fungada pra sentir o cheirinho dele. Quando saímos de carro, o que faz brilhar seus olhinhos são as árvores frondosas, para as quais você olha e diz: "A fôr!". Antes não havia o R no final, era só "fô". Foi há poucas semanas que você o aprendeu e pronuncia com capricho. Eu nunca tive essa ligação com as plantas. Sua bisavó Juju era íntima delas. Antes de você vir, filho, tive expectativas e curiosidades. Mas nunca teria sonhado com uma doçura assim. Que isso não seja um tola ingenuidade, mas vai ser bom ver você crescer com olhos mais atentos às flores que aos espinhos.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Imagine.

Tantas coisas mudam dia a dia e outras insistem em permanecer. Faz tempo que o vizinho de cima trocou de namorada, mas as brigas continuam. Alguma coisa mudou: agora ele grita mais alto, e palavras ainda mais duras – talvez só pelo gosto de chorar feito criança e então ganhar colo. No tempo do seu pai as discussões eram mais amenas. Ainda assim incomodavam. Nossa reação era bem humorada: colocávamos no som o John Lennon cantando Imagine e abríamos a janela para que a música chegasse ao andar de cima. Nunca soubemos se deu certo com eles. Cá embaixo, era mais um motivo pra curtir a nossa paz. A vida, filho, não é o que nos acontece. É o que a gente faz com o que nos acontece. Tantos passos nesse ano e meio sem seu pai e tanto mais nesses 38 anos. Não dá pra dizer que sou a mesma. Como você é tão mais você depois de um ano e cinco meses. Somos muitos o tempo todo. A cada novo dia, outros. E em nossos anos pode caber muito mais vida. Seu pai não tinha só 38 anos, filho. Ele já sabia o caminho de ser criança. E ainda teve a delicadeza de deixar você pra me ensinar.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Heranças.


Do meu pai:

a boca
as pernas tortas
o gosto pela rotina
gostar de cafuné
escrever
saber rir de si mesmo
um pulôver mostarda de gola alta que uma vez quis dar para o seu pai mas ele não gostou

Da minha mãe:

os joelhos
caninos salientes
olhos grandes
a mania de falar andando
o barulho da risada
cabelos brancos
a paixão por biscoito Leque da Confeitaria Colombo
gordura localizada na barriga
certa ingenuidade

Dos dois:
pernas finas
varizes
o nariz atrevido

Da mãe do meu pai:
a audácia
a independência
o humor
o amor pelos animais
inteligência e curiosidade
a braveza
obsessão pelo vestir
o senso crítico
um anel de ouro que foi presente do meu avô
uma pulseira de côco e ouro com uma figa
a elegância
risos
doçura
vitalidade
não ter medo do ridículo
as longas despedidas

Da mãe da minha mãe:
uma sina que eu não quis levar comigo

Do seu pai:
delicadeza
amor pelos amigos
amor dos amigos
a família
você
o indizível

Não sei de quem:

sobrancelhas a km de distância dos olhos
tatuagens
e esse otimismo que insiste
(esse eu quero deixar pra você, filho)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Better together.



Hoje acordei depois de uma semana cansativa e como sempre me pus a andar descalça pela casa. Você saiu pra passear, eu tomei o meu café e fui ouvir o Jack Johnson que dançamos ontem à noite pra você dormir. Enquanto eu arrastava sofás e poltronas tentando recolher as bolinhas da piscina que improvisamos, a música me falava sobre você hoje, sobre o seu pai ontem, sobre essa minha história que não pára. Tudo isso que é uma vida só. Desprezando o cansaço, o movimento do meu corpo era disposto e livre. Eu cantava de alegria e saudade, uma saudade ensolarada. Sempre a falta dele. Mas senti um sorriso no corpo e pensei sobre as manhãs. Não por acaso a vida é assim. Acordar e acreditar que tudo vai ser novo e melhor, sentir que já está sendo bom, não importa se exatamente do jeito que a gente sonhou. Você, filho, é a minha manhã fresca de sol.

Documentos importantes.

Uma certidão de casamento com carimbo de averbação de separação, uma certidão de óbito e uma de nascimento sem o nome do pai. É assim que o cartório vê a minha vida.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

A do meio.

Eu me lembro que meu pai carregava na carteira uma foto em preto e branco. Ela ainda bebê, rostinho colado no rosto da minha mãe. Em comum, a doçura das duas. Com o tempo vimos crescer com ela a doçura e muito mais da minha mãe.

Quando éramos pequenas, antes de dormir havia um ritual. Ela se deitava ao meu lado na cama e uma de nós fazia cócegas nas costas da outra. Um dia eu, outro dia ela. A medida era contar até cem. Guardo essa cena comigo e dela não me desfaço.

Dois irmãos mais velhos, duas irmãs mais novas: coube à sua tia o desafio de ser a filha do meio. Aquela que fazia do sorriso o caminho entre um lado e outro da família. Vivia tão perto da minha mãe e tinha um truque secreto que a fazia também próxima do pai. E eles não viviam exatamente no mesmo lugar.

Ao longo do caminho, vivemos histórias diferentes. Por conta do segundo casamento do meu pai, eles se perderam um do outro. Minha madrasta não teve habilidade para lidar com aquele laço. A foto na carteira virou lembrança.

Comigo o caminho foi contrário: o tempo me trouxe o pai de presente.

Ela nasceu em São Paulo, eu em Belo Horizonte. Ela a irmã do meio, eu a caçula. Ela se casou aos 22, eu aos 31 – e me separei aos 34, achei outra pessoa e fiquei viúva aos 36. Só depois disso tudo é que virei mãe. Ela tem três filhas e a mais velha já é mais encorpada que a tia. Ela teve poucos namorados. Eu não paro de ter os meus.

Eram muito mais que cinco anos a nos separar.

O tempo passou e nos fez perder muitas coisas pelo caminho. Diferenças também se foram. Éramos de gerações distintas. Não somos mais. A vida nos deu uma para a outra. E descobrimos tanto em comum.

Com seu olhar sereno, sua tia estava bem ao meu lado no dia em que você nasceu. Veio um pouco sua avó, um pouco seu pai. Trouxe muito de si mesma.

Essa semana ela me fez uma visita. Ligou, tinha saudade, veio à nossa casa antes do trabalho. Num vai-e-vem dentro do quarto, fizemos das novidades um resumo rápido entre um vestido e outro. Para nós, as coisas nunca foram tão fáceis. Acho que isso, sempre tivemos em comum.

Na despedida, um abraço comprido. Maior e mais longo que de costume. Intenso, forte, sem dizer nada. Não era mesmo preciso.

Viemos do mesmo lugar. Sabemos uma da outra. Das dores e dos sorrisos.

Com cada irmão, uma história de amor. A nossa é assim.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Para agradecer.

Muito obrigada é pouco, é nada.
Fica um sorriso no meu coração.
Um sorriso para cada um.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

O impossível.

Eu gosto de gostar mais de hoje que de ontem. Gosto de me sentir melhor a cada dia, olhar foto e me preferir atualmente. Por isso era tão difícil acordar nos dias após a morte do seu pai. Ao longo do tempo, reaprendi essa preferência. Gosto de novo do andar da vida como ela é. Mas ontem de manhã, por um instante, eu e você dançamos de pijama pela sala. Você no meu colo, o Jack Jonhson no som e seu pai tomando de assalto o meu coração. Enquanto eu chorava, você dizia "Mamã", a cabecinha feliz aconchegada no meu peito. Sim, de vez em quando vem o choro a me surpreender mais uma vez. Muito de vez em quando, mas ainda acontece. É que me lembrei do meu aniversário de dois anos atrás, naquela mesma sala. A notícia da gravidez ainda fresca e a felicidade estampada nos gestos de cada um. Ninguém precisava se preocupar com o que trazer, pois já havia o presente a comemorar. Lembrando desse dia cometi o pecado de desejar, não que o tempo voltasse, mas que o seu pai estivesse aqui agora. Só mais uma vez. Para comemorar meus 38 anos comigo e com você. Que viesse somar a presença dele ao que já é tão bom. Foi um pecado rápido. Doído e chorado, pois era preciso.



Isso foi ontem. Hoje é outro dia. Eu pensava ser impossível, mas tenho agora a idade do seu pai. E é acreditando no impossível que quero comemorar. Acreditando em cada sonho exagerado que já sonhei. Por que não?

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Patrimônio.

Na casa da Juju, eu era rica. Lá eu tomava suco de tomate temperado e comia enormes azeitonas azapa para abrir o apetite. Na hora do almoço, tomava de um gole só o delicioso suco natural de mexerica – mas antes eu tinha que comer tudo, enquanto as lágrimas desciam pelo rosto, sob os olhares militares de Vicenza, empregada-egípcia-casada-com-seu-antônio-italiano-que-fugiu-pra-cá. Tinha também a bacalhoada com pedaços gordos do próprio bacalhau, sem precisar pescar entre uma batata e outra. Nham, nham, nham, que bom mastigar o bacalhau todo e bom. No Natal, Vovó nos dava de presente notas novinhas do dinheiro da época. Eu era rica contando as muitas notas que para mim eram muitos dinheiros. Na casa da outra avó eu era invisível – neta mais nova de 14. Só ouvia um ou outro primo ou tia ou tio ou mãe ou pai ou mesmo a própria avó a me mandar para um lado ou outro, pra buscar não sei o quê. Hoje, a neta estampada não passa despercebida. Na casa dessa vó tinha um armário com um cheiro de antigo e doce que dá saudade. Era lá que moravam balas, chocolates e outras riquezas insuspeitas. De novo eu era rica e não sabia. Depois chegar em casa e encontrar uma geladeira onde tudo de especial era do meu pai. Eu tinha que respeitar alguém que detinha um território tão grande. Você não passaria por isso, filho. Seu pai iria cozinhar e preparar as coisas mais gostosas como assim faz a sua avó. Talvez passasse a ser você o rei da geladeira. Alegria saber que tive tempo de descobrir meu pai e ver que o rei não mordia. Você vai crescer amigo do seu. Esse de quem a cada dia tento trazer um pedacinho.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O desejo.

Ele gostava de passear com seus dedos sabidos a procurar coisas pelo mundo sem sair do lugar. E me mostrava orgulhoso algumas de suas descobertas. Meu coração já batia por ele quando ele me mostrou este desenho. Secretamente, desejei para mim. Desejei em mim. Mas a idéia dele era tatuar em si mesmo. Respeitei. Talvez eu tenha exagerado no desejo. O fato é que o tempo passou e ele não fez a tatuagem. Como se não fosse dele o desenho. Encontrou o que a mim já pertencia. Não me lembro mais como foi que ele resolveu me presentear com o traço, se fui eu quem o seduziu a fim disso. Lembro que não foi difícil. Se naquele tempo ele parecia querer se afastar de mim, não o fazia com muita convicção. Seu pai e Tio Dani pensaram juntos e o desenho ganhou uma espécie de sombra, de outra cor. Como um coração saindo de si mesmo, saindo do corpo. Um coração com alma. E foram comigo fazer a tatuagem. Eu já tinha feito tantas. Mas naquela, vez por outra, havia o braço dele, carinhoso, a tocar o meu. Havia o seu olhar de zelo a pousar sobre mim. Eu queria o coração dele tatuado em mim. Queria muito.

foto: Gianfranco Brisceño

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Olhos de poesia.


Ele fez a foto e chamou de Audrey. Gui querido.

domingo, 10 de agosto de 2008

Semântica.

Ele não gostava da palavra sedução. Para ele, ali estava contida uma intenção, um interesse, como se ele buscasse agradar os outros para ser aceito. Bobagem. Seu pai era sedutor, filho. Não um sedutor. Mas a palavra é merecida e única. Seduzia, não para ser aceito, mas por já ser. E era detalhista a sua sedução – nunca exagerada ou grandiosa. Difícil não se sentir por ele seduzido. Uma pessoa-amor, que entre seus prazeres cultivava o de fazer os outros felizes em pequenos gestos e coisas simples.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Pequenos milagres.

É tão bonito que ele ainda
me sorria pelas manhãs,
que cresça diante de mim
a aprender e me descobrir

Privilégio cuidar dele
de novo
misturado a mim
dar a ele as mãos
e ver crescer
o que sou eu,
o que sou ele,
o que somos você.

Milagre que ele se perpetue em mim.

Que ainda me surpreenda
e se revele
em cada passo ou palavra
exibindo também
algo de mim.

Perfeito que
nele eu faça cosquinhas,
e comigo ele brinque
de esconde-esconde,
renove meus dias,
me remoce a vida
e me mantenha
apaixonada.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Delicadezas.


É só procurar que a gente encontra, filho.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Paris continua lá.



Estive em Paris - e somente em Paris - por nove dias em março de 2004. Fui com meu primeiro marido e talvez seja esse um dos motivos pelos quais quero voltar.

Imagine, filho, discutir em frente à antiga ópera da cidade por causa de uma foto digital que ficou sem foco e descer a Avenue de L'Opera aos prantos. Imagine não poder comer num bom restaurante nem por uma noite, em plena Paris, para economizar. Imagine ficar com sede porque a Coca-cola custa 4 euros.

Ganhei a passagem num prêmio de publicidade. Era uma última tentativa de salvar o casamento, eu esperava voltar grávida e, graças a Deus, isso não aconteceu. Hoje tenho você (descobri há pouco que Francisco significa "vindo da França), fruto de outro amor e de outras circunstâncias.

De qualquer forma, a viagem foi incrível - não há como não gostar de Paris. Um lugar que mistura o novo e o velho com perfeição. Homens e mulheres bonitos, roupas impecáveis, cortes de cabelos idem. Museus recheados de obras que a gente só conhecia nos livros e outras absolutamente fantásticas que nunca poderíamos conhecer sem ir até lá. Um ou dois cafés em cada esquina, muitas livrarias. Parar e ler os jornais ou um livro, brincar com o seu cachorro ou apenas ficar observando as ruas lindas, gente indo e vindo, a arquitetura primorosa, os estímulos visuais no meio dos prédios antigos amarelo-acinzentados. As pessoas em Paris realmente param para viver.

Eu me lembro de uma mulher impecavelmente vestida, parada no semáforo em sua bicicleta e usando um celular ultramoderno. Isso é Paris. Um lugar com um metrô antigo e eficiente, mas perfeito para andar a pé. Essa parte o ex-marido adorou, já que é de graça.

Ficamos hospedados em Saint Germain des Prés, bairro intelectual e charmoso, ao lado do Quartier Latin. O hotelzinho, com um quarto pequeno, mas delicioso e quentinho para aquele fim de inverno, fica numa ruazinha chamada Saint Benoit, exatamente entre os dois cafés mais tradicionais da cidade: o Café de Flore e o Les Deux Magots. Ali, Sartre, Simone de Beauvoir e seus amigos se encontravam para fumar seus cigarros, folhear seus livros, anotar nos seus moleskinis e falar de arte, filosofia, psicanálise, literatura. Eu pensei muito em psicanálise ao perceber que chegaria ao fim da viagem sem experimentar uma rápida sentada para um café num desses dois lugares. Mais uma vez, o ex-marido me desencorajou por causa do preço.

Tantas pessoas me paravam na rua para pedir informações, com o olhar confiante de que eu as teria. E eu me sentia uma autêntica parisiense. Acho que tenho mesmo alguma coisa antiga com essa cidade. Mas apesar de me sentir parte da cidade, não pude sentir todo o seu gosto.

Tenho vontade de voltar à Place des Vosges, revisitar a casa de Victor Hugo, rever seus desenhos lindos para o Corcunda de Notre Dame. Faltou ver a Monalisa no Louvre - depois de um passeio obrigatório por toda a parte do Egito, acabamos não tendo tempo de ver a Monalisa. Mas, quem é a Monalisa diante de tantas múmias e sarcófagos importantíssimos, não?

Faltou um chocolate quente na Rue de Rivoli. Eu também compraria sapatos por lá. Tomaria mais vinhos, sairia pra jantar. Talvez não visitasse nenhum ponto turístico e experimentasse a vida de um típico parisiense – é assim que gosto mais de viajar.

Passear pela Rue de Mouffetard, a mais antiga da cidade, que faz qualquer manhã cinzenta ficar azul. E lá comprar frutas, flores, um vinho bordeaux por 4 euros. Ir ao Jardin des Plantes só porque o lugar é bonito, sem nenhum interesse no museu de história natural que ali está.

Deixar a câmera fotográfica em casa. Namorar na Point Neuf, olhando para o Sena. Tomar sorvete de chocolate na Ile de Saint Louis. Passear pela Place Vendôme sem se espantar com os enormes e lindos cartazes de propaganda, olhar as vitrines das joalherias como quem tem dinheiro para entrar e comprar.



Descer a Champs Elysées a pé. Comer um croissant na Fauchon, terminar a tarde lendo um livro – em francês – no Jardin du Luxembourg. E, ao voltar pra casa de metrô, aliviar o cansaço ouvindo alguém tocar violoncelo ali, ao seu lado.

Eu e seu pai tínhamos um combinado: eu ia apresentar Paris pra ele, ele ia me apresentar Londres. O desejo ficou na família. Eu e você vamos juntos, filho. Prometo.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Um segundo.

Quando você deita a sua cabecinha no meu ombro como se eu fosse a sua casa, reconheço a sensação. O abraço que você busca em mim, eu buscava no seu pai. Eu era você no ombro dele.

Acho que família é feita dessa alquimia, que junta duas pessoas de dois mundos diferentes para criar um terceiro. Eu e seu pai fizemos a dois esse lugar em que eu e você vivemos.

Antes de partir, ele plantou família em mim. Deixei de ser só, virei igual. Tão grande e tão pequena quanto qualquer um.

Estou melhor para seguir em frente. Levo tão mais comigo. Olho pra frente: sonhos me esperam. Pessoas, surpresas, conquistas, bênçãos. Olho pra frente: você.

Não acordo nem vou dormir lamentando a falta do seu pai. Esbarro nela de vez em quando. Eu vivo, ele falta. Eu vivo, ele falta. Vejo isso em você.

Mas talvez para você não falte nada. Algumas vezes não o vejo em você, não dói, não me lembro. Em outras tantas, você me volta um olhar conhecido – novo por ser seu, mas, ainda assim, dele. Nessas horas, pontadas. Depois passa. Meus olhos para você são de futuro, filho.

Não sei o que é a morte ou o que existe por trás dela. Sei o que fica. Sei que a ordem das coisas foi abençoada. Sei que você já nasceu ganhando, sorrindo, descobrindo.

Mas ele perdeu, filho. Isso não muda. E foi por tão pouco. Um triz. Talvez um único segundo.

Um segundo e o que era futuro virou passado, sem ter sido presente. Um segundo e os planos se rearranjaram na pressa, a medida do sonho passou a ser a do possível. Um segundo e a resposta era outra. O passado virou mentira, desapareceu, passou a ocupar o lugar do sonho.

Um segundo e já não seríamos três. Eu e ele, eu e você. Viramos quatro, dois a dois. Hoje sou tão outra.

Mas se aquele dia tivesse tido apenas 23 horas, 59 minutos e 59 segundos. Não houvesse aquele tal segundo e talvez passássemos juntos cada fim de semana, ele a dirigir o carro, a carregar a bolsa de bebê, nós três a passear pelo supermercado exibindo suas travessuras e discutindo por causa da marca do molho de tomate. Não houvesse esse segundo e meus braços não doeriam tanto ao final de um domingo. Eu descansaria para dar mais de mim a você, para que sua infância não corra de mim.

Por um segundo, não foi o seu pai: foi o sonho que morreu para ele. Conhecer você, ver seu rosto, pegar você no colo e exibir: "meu filho". Um sonho tão certo. Coisas lindas que a mim não foram negadas.

Mas outras foram. Um segundo e o que não era papel sumiu no ar. Assinaturas ficaram maiores que uma história, vida, morte, nascimento. Um segundo e o que vivemos ou sentimos precisou de provas. Desapareceu. Um nome, um futuro, família, respeito. Um segundo e a vida é só um processo, um título, uma relação biológica. Um segundo e bens. Sem desejo ou afeto.

Um segundo e somos só nós dois. E um mundo.

Diante do que fluía como um creme, a vida endureceu. Não ficou triste, trágica, dramática. Tornou-se difícil. Como tantos outros, como todos, estou diante da complexidade.

Mas não a admito. Quero, corro, rio, penso, crio para que pareça fácil. Não é possível, no meu momento mais bonito não cabe o difícil, só cabe o que flui. Como creme, dança, como cena em slow motion.

Um segundo, muitos e muitos outros. A vida deu voltas à minha volta e não sossegou enquanto não comecei a escrever. Um segundo e estou eu aqui a falar. Com você e com um mundo.

domingo, 20 de julho de 2008

Buquê.



Seu pai me mandou flores algumas vezes - em todas elas, escolhia pessoalmente a composição do buquê. Acho que essa deve ter sido a primeira. E eram flores tão bonitas que eu e Tia Telida resolvemos fotografar. Ainda bem.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

É por isso que eu canto assim.



Quando nos apaixonamos, ele me mandou essa música de presente. Dois anos depois, foi ela que cantei pra me despedir. Eu precisava dizer que era recíproco. Com ele aprendi a sorrir, com você reaprendi. A festa não pode parar.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

O grande amor.



Stan Getz e João Gilberto, eu e seu pai. Encontros assim fazem a vida ficar mais bonita. Outros encontros estão sempre acontecendo – é preciso prestar atenção. Ouve essa música, filho. Olha a letra. E me diz se não dá uma grande vontade de viver. Só por existir alguém que faz da tristeza essa melodia. Quando a gente diz "tocar a vida", até que tem poesia.

sábado, 12 de julho de 2008

Declaração de bens.

Não quero o vestido preto da viúva. Nunca o quis. Vesti, sim, um preto longo e bonito, tomara-que-caia, para irmos, nós dois, dar adeus a seu pai. E cantei foi um samba na hora da despedida. Sei que ele ficaria orgulhoso por isso – nossos pactos não se desfizeram com sua ida.

Tive medo, sim, que me vestissem o preto. A burca. A não-existência em nome do que passou.

Talvez eu seja vista assim, ainda de preto, por quem me lê e apenas me lê.

Você não. Você me sabe. O que vê de mim é a mãe, nascendo tão criança quanto você. Aprendo a andar, a falar, balbucio escolhas. Cresço de novo, descobrindo sobre mim o que assisto em você. Brincando, retomo caminhos e tento descobrir quem sou. Ou me faço de novo.

O passado é um lugar bonito para visitar de vez em quando. Não para morar. O tempo tem sua mágica. Não se vive uma vida de ontens.

Mas, de tempos em tempos é bom olhar para trás e redescobrir do que somos feitos. Que tijolos são esses que nos sustentam. E chorar. Para sentir, reconhecer. Chorar para sorrir.

Existe hora e lugar para isso. Aqui é um lugar.

Outro dia encontrei uma música que, eu me lembro, seu pai já mandou pra mim alguma vez. Não sei de quem é, não sei quem canta. Sei que é bonita. Sinto pelo que me suscita. E é ele que cresce em mim quando a ouço. A água brota dos meus olhos – e não é de tristeza.

Choro com o passado pleno. Choro com o futuro sonhado. Choro com o presente como é. O que tenho e o que perdi. O que perdi para me ganhar. Tenho tanto então. Tenho em primeiro o olhar para ver. Tenho o que me permite reconhecer.

Esse, sim, é o maior dos presentes. Tenho o que me permite estar de fato presente. Tenho tudo.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

O berço.

Poucos dias depois da notícia da gravidez, vi seu pai fechar os olhos e sonhar com o filho a ocupar o berço bonito que um dos seus grandes amigos tinha feito para os filhos - com as próprias mãos. Amigo que seu pai admirava, entre outras coisas, pela “mãe” que ele sempre foi para seus meninos.

Essa é a história do berço em que você dorme, filho. Foi seu pai quem buscou na casa do amigo e montou no seu quarto, com carinho e orgulho, sem imaginar que não estaria presente para ver você dormindo lá.

Quem diria que o amigo que fez e emprestou o berço, numa brincadeira do destino, acabaria namorando a viúva.

Você era bem pequeno quando ele começou a freqüentar nossa casa e não vai se lembrar das mãos grandes que o pegavam no colo com a desenvoltura de quem levanta uma taça.

Talvez por ter vivido outras perdas e por estar ciente de que seu pai não iria voltar, um antídoto rápido correu em minhas veias trazendo o aviso e a urgência de outro amor. Cedo descobri que eu estava bem viva e os meus olhos, abertos.

Não sei definir tudo o que ele trouxe naquele momento tão especial e delicado. Conviver comigo e com você, num tempo em que nosso laço era ainda físico, num tempo em que quase físico era ainda o meu laço com seu pai. Aguardar com paciência as horas das mamadas, nos dar a sorte de estar presente em alguns momentos das suas cólicas, em que eu simplesmente não sabia por onde começar.

Teria sido difícil para qualquer pessoa. Talvez fosse bem forte a sua vontade de estar comigo. Só sei que, no meio do barulho e do silêncio, houve espaço para o amor crescer.

Enquanto eu aprendia a lidar com a sua presença, filho, eu e ele aprendíamos juntos a lidar com a falta do seu pai. Mesmo sendo para cada um de nós faltas bem diferentes, era alguma coisa a partilhar. E assim a memória do seu pai nunca nos afastou, ao contrário: falávamos de nós, íamos nos conhecendo, mas em boa parte das conversas o Gui estava presente e não havia constrangimento quanto a isso.

Eu tinha você, ele tinha os filhos, tínhamos nossas vidas, trabalhos, obrigações. E ele tinha seus fantasmas. Hoje, vejo que eu também tinha os meus.

Eu queria amar de novo, e amei, mas algumas coisas só vêm com o tempo. Até mesmo a compreensão de que, apesar de amar, eu estava carregada de carências, anseios, faltas que ele nunca poderia suprir. A falta do seu pai sempre será a falta do seu pai. Não há ninguém que venha ocupar esse buraco. E nem deve. Há outros espaços para outros amores.

Não sei se o namoro acabou porque ele encontrou outro amor ou se ele encontrou outro amor porque o namoro acabou. Nas frases curtas dos filmes americanos, tudo parece mais fácil. “I met someone else”, ele teria me dito. Hoje, está feliz e apaixonado por uma paulistana bonita que, embora comigo nunca tenha sido simpática, estava no seu direito. Foi a primeira vez que me senti trocada. Mas acho que 2007 foi mesmo um ano de novas experiências.

O tempo passou, quase não nos vemos, mas ficou alegria. O que ele veio fazer, com sua timidez e delicadeza, hoje compreendo. Chorar ou sorrir junto comigo, ser meu amigo naquele momento de transição para, juntos, chegarmos a outro lugar. Trazer para perto de mim o que do seu pai havia ficado nele. E também o que ele tinha de novo, de diferente. Abrir minhas portas para viver novos sonhos.

Seria ingenuidade pensar que ele também não tenha buscado um pouco do amigo em mim.

Foi um amor bonito. Foi troca. O mais bonito foi assistir aos olhares amorosos que ele dirigia a você. Acho, e já disse isso pra ele, que ele foi e sempre será um pouco seu pai também.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Cafuné.



Ele tinha um jeito moleque de seduzir. Como se não percebesse, não calculasse. E não era mesmo cálculo, era bordado. Talvez fosse terapia tecer algum atalho que o fizesse chegar bem pertinho, mesmo estando longe. Um cafuné de dedos bem longos. O tempo passou, a vida mudou e hoje estou de novo diante desses dois desenhos-poemas, colagens feitas por ele no computador, enviadas por e-mail nos tempos em que a nossa distância era mais que física. Era seu pai tentando dizer o que sua boca não tinha coragem. Talvez tentando dizer para si mesmo o que o tempo se encarregou de mostrar: era difícil separar a gente. Só mesmo a vida. Ou nem mesmo ela, pois surgiu você. Que outro laço para sempre? Mas a vida continua. Ou melhor: recomeça. Em você – e não só em você, não só por você. Recomeça em mim, fresca, vento batendo no rosto, brisa trazendo sonhos novos. Foi ele que me mostrou isso. E o que mais nessa história eu poderia ler?

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Musiquinhas.



Delícia era encontrar presentinhos assim na minha caixa de e-mails. Era o jeito dele de fazer mágica com a rotina. Pequenas surpresas, diariamente.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Paz e amor.

A mágica de ter um filho é ver nele um pouco de você, misturado com um pouco da pessoa que você ama e, ainda assim, saber que ele não é nenhum dos dois. É uma alegria, filho. Você me conquista pelas nossas semelhanças e também pelo que tem de complementar. Sou toda boneca pra me vestir e me vejo apaixonada pelo seu charme hippie. É o seu pai em você. É ele em mim. Somos nós dois, eu e ele, ganhando mais estrada pela vida afora. De um jeito que você vai escolher. Isso é bonito demais.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

A parede.



Repare bem, filho. Aquele labrador que brinca feliz no meio do mato é imaginação do seu pai. Aquele céu azul por onde passeiam finas nuvens foi ele quem pintou. Desejou para você um mundo assim. Talvez pensasse um dia trazer de surpresa um cachorro preto com alma de moleque. Pra passear com a gente no jardim da casa que ele sonhava construir. Talvez não tenha tido tempo para pensar, só pra sentir. Aquele era mesmo o desenho sonhado para o quarto do filho? O tempo se encarregou de decidir. Se um ponto final com jeito de vírgula o tirou daqui para sempre, ficou o desenho no meu computador. Aquela era a parede. Ponto. Antes, eu quis para ela carneirinhos macios. Quis tantas coisas que assim não foram. Aquele era o seu mundo e estava pronto. Achei lindo. Acho que tive tempo de dizer isso pra ele. Diferente de um quarto de bebê. Forte e delicado como o pai do bebê. Hoje, é diante dessa parede que você brinca. Parede que é um céu. E eu sigo, sem parar para pensar se à minha frente está o que desenhei pra mim. Não me lembro do desenho. Sigo achando bonito mesmo assim.

terça-feira, 17 de junho de 2008

O sósia.

Pouco tempo depois da morte do seu pai, muitas pessoas começaram a comentar comigo sobre um ator que se parecia muito com ele. Depois de um tempo fui conferir, vi que era verdade e que, além de parecido mesmo com o seu pai, o cara era um bom ator. O nome dele é João Miguel e ele tem feito muitos filmes nacionais. Por um tempo fiquei confusa a imaginar o que eu sentiria se o visse pessoalmente. Bobagem, eu disse para mim mesma. Pura transferência. E me perdoei por essa fantasia infantil que tenta acreditar num desfecho menos definitivo para a morte. Outro dia vi uma entrevista desse ator na TV e o sotaque baiano me impressionou. Seu pai, apesar de ter nascido no Piauí, tinha sotaque paulista, pois foi em São Paulo que morou por muito tempo. Por causa do sotaque, o "incômodo" da semelhança passou. Mas nesse fim de semana eu fui a São Paulo. Era a primeira vez que eu viajava desde a minha última viagem com seu pai, naquela passagem de 2006 para 2007. Dois únicos dias naquela cidade e, num bar na Vila Madalena, fui surpreendida pela presença do cara. Não sei explicar o que me aconteceu. O coração bateu forte. De perto, era ainda mais parecido. O jeito. O charme. A presença. Até o tipo de roupa. Ele estava com outras pessoas, talvez a namorada ou mulher. Levei um tempo com medo do ridículo até que, encorajada por duas grandes amigas, finalmente pedi que ele tirasse uma foto comigo. Expliquei o motivo. Muito chato incomodar um ator assim. Pelo pequeno resumo que fiz, ele ficou tocado. Não pude explicar mais, não falei de você, não queria incomodar. Bem que deu vontade de brincar e dizer "Quer ver como seria o seu filho comigo?" e mostrar orgulhosa uma foto sua. Talvez eu pudesse ser mais ousada: "A gente poderia namorar. Já tenho até um filho parecido com você". É claro que isso tudo é só uma brincadeira. Mas confesso que a presença dele me deixou confusa. Não era o seu pai, filho. Era outra pessoa. Tenho que respeitar os dois. Mas era alguém muito, muito parecido com ele. Parece que eles vieram do mesmo mundo. Difícil saber o que fazer quando você encontra um sósia do cara que você amou profundamente e que não existe mais. Mais difícil ainda é perceber que a semelhança não é só física. Os dois têm aquela coisa quente do Nordeste que nem sei. Um olhar apertadinho, os olhos pequenos e doces. Uma coisa assim que não se explica, que não tem nome. Mas que o seu pai tinha e que eu não imaginava encontrar em outra pessoa. Ai ai. De certa forma, dá um alívio saber que no mundo ainda existe um sorriso assim.

Eu e seu pai em setembro de 2006.

João Miguel e eu em junho de 2008.

quinta-feira, 12 de junho de 2008

12 de junho.

Hoje é dia dos namorados, filho. Uma data inventada para vender mais flores, jóias, perfumes, roupas, cartões românticos e todo tipo de produto que possa acompanhar ou substituir um carinho. A despeito de ter sido inventada para esse fim, esse dia acaba lembrando às pessoas sobre uma coisa importante: o amor. Parece incrível, filho, mas quando a vida nos engole isso chega a acontecer. Por duas únicas vezes eu e seu pai passamos juntos o 12 de junho. Mas, incrível, em nenhum deles estávamos oficialmente namorando. Tivemos uma história assim, com algumas idas e muitas vindas. Estivemos separados, embora o tempo todo juntos. Também não me lembro de algum presente que ele tenha me dado em datas como aniversário ou Natal, como manda o figurino. Foram todos fora de hora. Às vezes porque ele se apaixonava pelo presente, às vezes porque via meu olhar apaixonado diante de uma vitrine. Observava, com aqueles olhos amorosos, depois fazia o carinho. Eu podia não estar atenta. Ele sempre estava. Um charme do seu pai, que fazia mais gostosa a vida ao lado dele. Fazer da rotina uma surpresa. Até aquela manhã de sol, quando o que parecia ser começo virou fim. Você devolveu: o que parecia ser fim era só o começo. Surpresa, mais uma vez. Feliz dia dos namorados, meu presente mais querido.

Acabo de descobrir.

Quando você não tem a pretensão de, pode acabar conseguindo.

domingo, 8 de junho de 2008

Qualquer coisa.



Outro dia fui ao show do Arnaldo Antunes e este novo arranjo para uma música já conhecida me fez senti-la de um jeito bem diferente. Pela primeira vez, a letra falou comigo. E vi que ela poderia resumir a minha história com seu pai. Chorei, chorei muito. Pela beleza do acordeon a me contar sobre esse amor. Um amor em que pode acontecer qualquer coisa. Você inclusive. A ida do seu pai num piscar. Acontece que quando quase tudo acontece, nem tudo continua sendo possível. Mas uma coisa é verdade: "a gente caminhando de mãos dadas de qualquer maneira".

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Nem sempre.

Nem sempre a saudade é querer que o tempo volte. Ontem vi uma mulher grávida atravessando a rua e reconheci nela um semblante que já tive. Lembrei o tempo em que você estava aqui dentro, filho. Andar por aí levando a felicidade na barriga. Hoje, eu e você somos dois. Gosto tanto. Não trocaria esse momento pelo anterior, como também não daria o que tenho para ter o seu pai de volta. A vida na sua medida. Aceitá-la é sábio: transformar a saudade em boa de sentir. Nem sempre a saudade é querer que o tempo volte.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Luxo.

Hoje acompanhei o caminhão de lixo no meu curto caminho até o trabalho. Enquanto recolhiam os sacos, os lixeiros corriam e sorriam. Achei tão bonito.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Pé-de-meia.

Comprei pra você meias azuis, amarelas, cor-de-rosa, verdes, alaranjadas, vermelhas, brancas. Acho divertido ver seus pezinhos nelas. Com antiderrapante, permitem que você dê suas voltinhas pela casa, deixando o ambiente mais colorido. Dias atrás, descobri que uma delas estava com um furo enorme, deixando sair a cabecinha do dedão do pé. Se é que se pode chamar de dedão o desse pezinho fofo, esse pezinho-pão. E logo eu, que nunca mantenho roupas furadas, rasgadas ou desbotadas, ainda não tomei providência para tirar a meia da sua gaveta. Acho que me apeguei à imagem do seu pezinho roto e maltrapilho, um maltrapilhinho engraçado e querido. Nunca consegui fazer de fato um pé-de-meia. Mas quando olho para o seu pé com o dedãozinho escapando, me apaixono e rio sozinha. Fiz foi muito mais na vida, filho. Fiz você (perdoe a minha pretensão). Tem pé-de-meia mais caro?

Semelhanças.

De: guifraga
Data: 14 de novembro de 2006 18h50min6s GMT-02:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: Amor, olha que lindo.

que linda, amor, linda demais.

On 14/11/2006, at 18:26, Cristiana Guerra wrote:

Avó e bisavó do Cisco, amor.
Agora juntas, zelando por ele lá de cima.




No ombro da mãe, sua avó Dulce.
Ela também perdeu o pai antes de nascer, filho.
Esse email eu mandei para o seu pai poucos dias
depois da morte da sua bisavó.
Eu gostava dela, mas éramos muito diferentes.
Ou nem tanto.

Significados.

De: guifraga
Data: 3 de outubro de 2006 15h53min5s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: Francisco significa...

Ele é franco, amor.
eu tb amo ele dimaish...

bjbjbjbjbj, amor


On 03/10/2006, at 15:48, Cristiana Guerra wrote:

Qual a origem e significado do nome Francisco?

Francisco Figueiredo
Luxemburgo

Segundo o «Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa» de José Pedro Machado, Francisco é «adaptação port. do antr. it. Francesco. O nome difundiu-se por ser o de S. Francisco de Assis (…). Trata-se de 'Franciscus, latinização de Franco ou Franko, nome étnico, com o sufixo germânico -isk-, isto é, Fränkisch' (…). A origem está no lat. medieval Franciscus, der. étnico de Francus, 'franco' (…), depois, (…), confundiu-se com o adj. francisco, de França + -isco (…).»

C.M.




Traduzindo, amor: Francisco não significa absolutamente nada.
Mas mesmo assim eu amo ele.

Amorzinho.

Cristiana Guerra
Diretora de Criação

Assim, do nada.

De: guifraga
Data: 27 de setembro de 2006 17h10min44s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto:

amor

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Para que flores não faltem.



De: guifraga
Data: 14 de setembro de 2006 14h34min30s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: Achei.

Que goshtoso, amorzinho.
Além de santo, também é nome de rio.
Você é linda, amor.
um beijo, G


On 14/09/2006, at 13:58, Cristiana Guerra wrote:

<07 O Rio.mp3>

terça-feira, 27 de maio de 2008

Antes de tudo, depois de tudo.



Outra da nossa trilha sonora, filho. Essa era especial, pois nos acompanhou desde o começo. Estava também na seleção musical que seu pai fez pra mim, dias antes de partir.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

A luz da falta.

Era uma manhã de segunda-feira. No som, a trilha do filme Cinema Paradiso.

Eu estava em casa, ao lado dela. E também meu pai, meus irmãos, minha avó – a mãe dela, que aos 23 anos tinha perdido o meu avô, assim como perdi seu pai. Havia muito mais gente naquele quarto. Minhas tias, meus primos, os melhores amigos dela. Eram muitos. A casa parecia um acampamento.

Foi meu pai quem sugeriu que eu colocasse a música. A doçura do seu avô, que só fui descobrir mais tarde. Generoso em tentar fazer com que aquele momento fosse suave para ela.

Foi triste. Mas também foi grande. Um privilégio. Estar ao lado dela no exato instante em que ela deixou de estar.

Esperávamos por isso há mais de 48 horas. Ela parecia estar indo aos poucos. Mostrou ser dura na queda.

Eu me lembro de um ato desesperado do meu pai, tirando dela o tubo de oxigênio que mostrava não ter mais serventia. Talvez ela finalmente respirasse quando seu coração pudesse descansar.

"Fico te devendo Paris", ele disse chorando.

Mentira. Se para ela Paris fosse importante, teria conseguido. Colocando os desejos dele em primeiro lugar, minha mãe dominava docemente o meu pai. Eram cúmplices: ela com sua obediência esperta, ele um menino enfiado num paletó de “homem da casa”. Ele era o médico solicitado a todo instante. Ela era seu copo d’água.

Como toda boa esposa e dona-de-casa, sua avó cozinhava bem. A diferença é que fazia a outra parte também. Fazia o supermercado. Fazia o imposto de renda. Levava o carro à oficina, consertava a porta, trocava o chuveiro. Minha mãe era uma mulher com uma caixa de ferramentas. Não por acaso, tenho a minha também.

Ela tinha o mapa de Belo Horizonte na cabeça. Você perguntava como chegar em tal rua e ela não respondia sem antes saber em que número. Explicava o caminho com detalhes: cada ponto de referência, cada detalhe e até quem provavelmente você encontraria pelo caminho, até chegar do lado exato da rua, em frente ao número. Eu perdia a paciência. Era muito difícil memorizar tudo isso.

Mas eu era apaixonada por ela.

Quando pequena, eu tinha ouvido a minha avó dizer: “Sapato virado, a mãe morre”. Rapidamente adquiri uma obsessão por manter em ordem, não só os sapatos, mas o quarto inteiro. Se era esta a intenção desse ditado absurdo, comigo deu certo. Meu armário era motivo de orgulho para Mamãe – ela gostava de mostrá-lo para as visitas, roupas separadas por cores, cabides iguais.

Ela era forte. Ela era doce. Ela era persistente. Juntou tudo e teceu a colcha da minha cama, centenas de roupas de tricô, os casaquinhos que muitos bebês usaram sem nunca a terem conhecido. Alguns deles agasalharam você, Francisco.

Dulce que não tinha esse nome por acaso. Dulce que era um sorriso. Dulce que também era Maria. A mim ensinou que a gente tinha duas mães: uma na Terra e outra no céu. Hoje estão as duas lá em cima.

Para mim foi mais fácil conviver com a morte dela do que com os dois anos de sofrimento que a doença nos trouxe. Embora parecesse impossível me acostumar com a idéia da sua não existência, desejei que ela fosse. Vi minha mãe murchar como uma flor. Troquei a cor da angústia pelo silêncio da saudade. Dor mais doce e mais altruísta.

Meus irmãos já não moravam em casa. Ficamos só eu, Papai e o enorme medo que eu sentia dele. Com a ida de quem fazia a ponte entre nós, finalmente nos conhecemos. Ganhei um pai de presente.

Por um tempo, ele cultivava a presença de objetos dela. Um chinelinho, a cestinha de tricô, os óculos. Era a primeira vez que ele encarava a sua falta. Antes, só fazia lutar com os fantasmas da sua cabeça – a esperança com muito poucas chances de sobreviver diante das convicções da medicina.

Minha dor, deixei em segundo plano. Respeitei a escolha dele. Violentei minha vontade e suportei a convivência com aqueles pedaços dela que, aos poucos, foram desaparecendo. Não olhei para trás. Não parei para pensar na falta. Apenas agradecia porque aquele sofrimento tinha acabado. Ainda levei um tempo para me lembrar dela bem, saudável.

Para não ver Papai sofrer, também não pensei no que senti ao vê-lo casado com outra pessoa – o mesmo quarto, a mesma casa, até o carro dela passou a ser dirigido pela madrasta. O importante era que ele não estivesse mais tão só.

Eu não desejava sequer mais um dia como aquele em que ele voltou para casa dizendo: “Fui ao banco encerrar a conta da sua mãe. Não tem outro jeito, né?” Naquele momento, trocamos de papéis: era ele o filho procurando o meu colo. Com o olhar, ele me pedia permissão para tentar ser feliz. Prontamente atendi.

Comprou um Citroën vermelho com teto solar. E em muito pouco tempo estava casado.

A verdade é que a minha cabeça arranjou um esquecimento para poder seguir em frente.

Fiquei quase 13 anos sem mais me lembrar o que é ter mãe. É você que está me ensinando, filho. Naquele 21 de março, ela começou a nascer de novo dentro de mim.