sábado, 27 de setembro de 2008

Valores.

De vez em quando ele fazia o carinho de colocar duas notas de cinqüenta no meu bolso, aliviando o meu fim de mês, mesmo que no próprio bolso sobrasse apenas uma. E ao ver minha expressão entre o alívio e a tristeza de chegar a esse ponto – não por ganhar pouco, mas por gastar muito –, citava a avó: "Senão o cachorro faz xixi no seu pé, amor." E assim ele me arrancava um sorriso. Também pude fazer por ele algumas vezes, e o fazia com prazer. No dinheiro também estava o amor. Um jeito bonito de misturar as coisas, preservando os desejos e escolhas do outro. Não era hoje eu, amanhã você, mas o correr natural dos gestos e a alegria de dar o amor na forma em que ele viesse: fosse em nota de dinheiro, beijo, telefonema ou pedaço de pão. Nunca, nunca vi seu pai me recriminar por alguma compra. Ao contrário, eu ia correndo mostrar cada peça especial que eu havia encontrado e ele me devolvia um elogio pelo bom gosto, um sorriso de me ver bonita porque aquela também era a minha forma de amor. Amor que não estava no quanto cada um ganhava ou no dividir ou não a conta. Nem na conta conjunta que nunca tivemos. Amor de estar ali ao lado sempre, num desejo só, e aí se incluem os desejos que são de cada um. Quase sempre dava pra viajar pra pertinho, pegar um cinema, tomar um vinho ou fazer um jantar simples, não importa de que lado ou dois ou quanto viesse o dinheiro. E se não houvesse nenhum dinheiro, juntos estávamos em uma de nossas casas. De geladeira vazia e sorriso cheio. Acho que fiquei mais generosa convivendo com ele. Sinto que você vai ser assim também. E vai poder dizer: "Aprendi com meu pai".

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Para quem tem uma boa idéia.

Você tem uma boa idéia para ajudar uma ou mais pessoas? Olha que legal. Espalhar por aí já é uma boa idéia.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Mamãe vai trabalhar.

Aceno dizendo "eu te amo" e você me devolve um sorriso cheio, apertando os olhinhos para se proteger do sol. Todos os dias, esse seu olhar do seu pai. Que outro final feliz essa história poderia ter?

sábado, 20 de setembro de 2008

Mundos.

Já temos um código, eu e você. Coloco um CD pra tocar e você imediatamente pula no meu colo como se aquele fosse um convite pra dançar. Nem sempre é, mas eu nunca resisto. Não importa o que eu tenha pra fazer, acabo me entregando. Já imagino a cena: você no meu colo, aos 12 anos, minha coluna doendo e o coração feliz da vida.

Não é tão fácil construir afinidades com alguém, filho. Existe um caminho, uma conquista. Eu e você soubemos criar o nosso mundo. Temos coisas que gostamos de fazer juntos. Momentos em que não precisamos dizer nada um para o outro e o mundo acontece. Você também tem os seus com a Vovó, com o Vovô, com a Zezê — e é feliz assim.

Eu pensava que seria diferente. Mas não me vejo querendo tomar para mim suas horas mais importantes e felizes. O primeiro dentinho, o primeiro passo, a primeira palavra. Sabe-se lá quais foram os seus primeiros. Para mim, não importa. Se algo faz você feliz, me faz também e pronto. Não quero medalhas em mim, mas sorrisos em você. Mesmo que eu não os veja o tempo todo.

Também construo mundos com outras pessoas. E é bom que seja assim. Tenho com Elisa um mundo de imagens cotidianas. Com o Dani, um mundo de segredos e passos. Com a Telida, humor e silêncios. Com cada um que me cerca construo um ou vários pequenos mundos onde não vemos o tempo passar – e então a vida parece fazer sentido.

Com o seu pai eram muitos. Fique atento, filho: quando acontece de encontrar a cada dia mais mundos com alguém, costuma ser amor.

O som ligado e nós dois a passear pela sala, você com a cabeça entregue ao meu peito, os olhos livres e o meu pensamento dançando também. Esse é o nosso mundo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Você, hoje.

Acordou, sorriu pra mim, veio para o meu colo, olhou para a foto acima do trocador e disse com gosto: "Papai". Há alguns dias aprendeu e vem repetindo esse som fácil. "Papai, papi, papi, paaaaaai." Diga sim, filho. Diga que essa palavra é bonita demais. Fale à vontade, que a nossa conversa apenas começou.

sábado, 13 de setembro de 2008

Até o fim.



Foi seu pai quem me apresentou Madeleine Peyroux. Um dia cheguei na agência e encontrei na minha mesa uma cópia do primeiro CD dela. Natural ele ter se apaixonado: aquele som traduzia como poucos o seu jeito de amar e viver.

Mas, diferente do Jack Johnson, a voz dela me soava intensa demais. Talvez porque o disco tenha entrado na minha vida naquele período em que eu e seu pai não estávamos juntos nem separados. Encontrar a gravação na minha mesa falava do amor dele, mas outras atitudes diziam o contrário.

Era uma noite namorando ao som de “J’ai deux amours” e no dia seguinte um silêncio triste a nos convencer de que ainda não era a hora de ficar juntos. Madeleine parecia cantar por mim a urgência de estar com seu pai, como se eu soubesse mesmo que algo estava prestes a acontecer. A voz dela chegava aos meus ouvidos carregada de uma angústia que me tirava o ar.

Agora, que já não há mais o medo de perder seu pai, faço o exercício contrário de tentar despir as músicas daquele significado. Porque, como o Jack Johnson, Madeleine Peyroux merece ser ouvida.

Mas foi há poucos dias, ouvindo “Dance me to the end of love”, que eu finalmente notei um verso da letra: “Dance me to the children who are asking to be born”.

É verdade. Foi mesmo por você, Francisco. Dançamos jazz, rock, samba, bossa nova. Separados, juntos, olho no olho, de rosto colado no meio da sala ou sozinhos, sentindo a falta um do outro. Dançamos e dançamos esse amor intenso que queria você.

Faz sentido tudo ter começado numa pista de dança. Cabe a nós dois, filho, continuar essa coreografia.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Para você, Francisco.



Para você, não existe nada mais importante que as flores. Já faz um tempo que você descobriu a primeira e desde então nunca mais parou de falar sobre isso. Uma flor desvia a sua atenção, interrompe qualquer choro e coloca um sorriso doce no seu rosto. Plantas bem verdinhas também são flores para você, por mais que eu insista em explicar que não é bem assim. Você também travou grande amizade com o alecrim que temos plantado na nossa microvarandinha. Toda hora você vai lá dar uma fungada pra sentir o cheirinho dele. Quando saímos de carro, o que faz brilhar seus olhinhos são as árvores frondosas, para as quais você olha e diz: "A fôr!". Antes não havia o R no final, era só "fô". Foi há poucas semanas que você o aprendeu e pronuncia com capricho. Eu nunca tive essa ligação com as plantas. Sua bisavó Juju era íntima delas. Antes de você vir, filho, tive expectativas e curiosidades. Mas nunca teria sonhado com uma doçura assim. Que isso não seja um tola ingenuidade, mas vai ser bom ver você crescer com olhos mais atentos às flores que aos espinhos.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Imagine.

Tantas coisas mudam dia a dia e outras insistem em permanecer. Faz tempo que o vizinho de cima trocou de namorada, mas as brigas continuam. Alguma coisa mudou: agora ele grita mais alto, e palavras ainda mais duras – talvez só pelo gosto de chorar feito criança e então ganhar colo. No tempo do seu pai as discussões eram mais amenas. Ainda assim incomodavam. Nossa reação era bem humorada: colocávamos no som o John Lennon cantando Imagine e abríamos a janela para que a música chegasse ao andar de cima. Nunca soubemos se deu certo com eles. Cá embaixo, era mais um motivo pra curtir a nossa paz. A vida, filho, não é o que nos acontece. É o que a gente faz com o que nos acontece. Tantos passos nesse ano e meio sem seu pai e tanto mais nesses 38 anos. Não dá pra dizer que sou a mesma. Como você é tão mais você depois de um ano e cinco meses. Somos muitos o tempo todo. A cada novo dia, outros. E em nossos anos pode caber muito mais vida. Seu pai não tinha só 38 anos, filho. Ele já sabia o caminho de ser criança. E ainda teve a delicadeza de deixar você pra me ensinar.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Heranças.


Do meu pai:

a boca
as pernas tortas
o gosto pela rotina
gostar de cafuné
escrever
saber rir de si mesmo
um pulôver mostarda de gola alta que uma vez quis dar para o seu pai mas ele não gostou

Da minha mãe:

os joelhos
caninos salientes
olhos grandes
a mania de falar andando
o barulho da risada
cabelos brancos
a paixão por biscoito Leque da Confeitaria Colombo
gordura localizada na barriga
certa ingenuidade

Dos dois:
pernas finas
varizes
o nariz atrevido

Da mãe do meu pai:
a audácia
a independência
o humor
o amor pelos animais
inteligência e curiosidade
a braveza
obsessão pelo vestir
o senso crítico
um anel de ouro que foi presente do meu avô
uma pulseira de côco e ouro com uma figa
a elegância
risos
doçura
vitalidade
não ter medo do ridículo
as longas despedidas

Da mãe da minha mãe:
uma sina que eu não quis levar comigo

Do seu pai:
delicadeza
amor pelos amigos
amor dos amigos
a família
você
o indizível

Não sei de quem:

sobrancelhas a km de distância dos olhos
tatuagens
e esse otimismo que insiste
(esse eu quero deixar pra você, filho)