quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

De mãe para filho.

Seu pai amava viajar. Eu também gosto, mas não sou assim tão solta. Sempre me culpei por isso. Mas agora entendi que ser assim tem o seu lado bom. Nos meus tempos de adolescente eu ficava indócil se não arrumasse um programa no fim de semana. Ficar em casa no sábado à noite era sinônimo de ser esquecida pelo mundo. Quase como ser invisível. Com o tempo aprendi a cultivar meus espaços. Aos 27, fui morar sozinha e fazer minha casa teve uma importância muito grande. É maravilhoso olhar para o seu apartamento, mesmo que ele não seja próprio, e sentir que ele é uma extensão de você. Que à sua volta estão as suas escolhas, as coisas que você ama, um pouco da sua alma. E isso com o tempo melhora, porque você passa a se conhecer mais. Para mim, uma casa aconchegante fala do quanto me sinto confortável em mim mesma. Adoro viajar, filho. Mas também adoro ficar. Não sei como, mas quero poder ensinar essa sensação pra você. Quero muito que você seja feliz por ser você. Viajar é maravilhoso. Mas é fundamental gostar de voltar para casa.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Tempo, tempo, tempo.



Ontem vi você se apoiando em uma cadeira para ficar de pé. Eu assistia à cena do mesmo ponto de vista que, um ano e pouco atrás, via seu pai montando a mesma cadeira. Às vezes ainda é muito difícil acreditar, entender, aceitar que vocês tenham sido separados pelo tempo. Estranho pensar que sou a conexão entre pai e filho que nunca vão se conhecer. Fico a me perguntar por que em minha vida fica sempre a impressão de que alguém vai para que outro possa vir. Volto um pouco no tempo e percebo que estivemos sempre correndo um do outro. Eu e ele, o tempo.

Nasci quatro anos depois da quarta filha – e meus irmãos vieram seguidinhos, um ano após o outro. É como se eu estivesse sempre chegando atrasada. A infância dos meus irmãos correu de mim. Sozinha eu inventava brincadeiras – até acredito que tenha sido feliz, mas isso com o tempo cansa – e sempre falei muito comigo mesma. Fui a última da turma a menstruar, beijar na boca, namorar, casar. Demorei muito pra ver o lado bom disso.

Eu me lembro quando minha mãe morreu e eu disse chorando pra minha irmã: “Ela não vai me ver casar”. Essa era a minha principal preocupação – era assim que eu tinha aprendido. Nem minha mãe, nem meu pai. Eu me casei sete anos depois da morte da minha mãe, seis meses depois da ida do meu pai, a despeito de uma sensação lá no fundo de que eu não seria feliz. E me apressei em engravidar, depositando aí toda a minha esperança de felicidade. O filho aconteceu, mas escorreu das minhas mãos. Depois outro filho, outra perda. Era a vida me dizendo que naquele caminho eu não seria feliz.



Nesse meio tempo, perdi minha avó e grande amiga. Ela tinha 95 anos, mas, como até então as minhas perdas não tinham lógica, achei que ela pudesse ficar mais. Mas as faltas costumam revelar verdades: coincidência ou não, poucos meses depois me separei.

O tempo trouxe seu pai à minha vida numa rapidez incrível. Éramos amigos, falávamos um pouco de nós um para o outro. Entre um cafezinho e outro, trocávamos confidências. Até que um dia ele me confidenciou coisas muito boas de se ouvir. Eu me lembro da rapidez com que aquelas palavras tiveram efeito em mim.

E o tempo continuou correndo assim: ora se estendia, ora passava rápido demais.

No caso do seu pai, aquela urgência inexplicável era proporcional à intensidade do que eu sentia. É claro que eu relacionava a minha pressa às minhas perdas. A essa altura, meus sonhos de criança tinham ficado para trás. Meus pais não me viram casar, não me viram ter filhos. Nem minha avó Juju viu um filho meu, e sei que ela sonhava com isso.

No pouco tempo que eu e seu pai tivemos, idas e vindas mostraram que nosso tempo não era o mesmo. Mas tempo algum foi capaz de nos separar.

Quando você veio, a mãe da minha mãe ainda estava viva, mas tão doente que nem compreenderia se eu contasse que eu estava grávida. Em alguns meses ela literalmente descansou. O que mais posso dizer de uma mulher que ficou viúva aos 23, criou três filhas, nunca mais se casou, ficou dois anos numa cama e só parou aos 91? No mínimo, que ela exigiu demais de si mesma. Seu pai não teve tempo de conhecê-la, mas foi comigo ao enterro – que, ironicamente, foi dois meses antes do dele.

Acho linda a maneira como o Gui conviveu com a memória dos meus pais e da minha avó Juracy. Mesmo sem tê-los conhecido, falava deles com orgulho e ternura, como se sentisse saudade, como se há muito fossem amigos. Quem saberá dizer se não foram mesmo. Uma vez chegou contando que na sauna do clube um senhor mais velho falava de seus tempos de basquete e ele, orgulhoso, contou: “Você deve ter conhecido meu sogro, ele jogou basquete no Ginástico.” E os dois bateram um longo papo sobre meu pai, sem que o homem tenha percebido que eles não tiveram tempo de se conhecer.



No clima dessa lógica invertida, vivi a sua vinda com alma de criança. Entendi que era a minha hora de ganhar. Seu pai também nasceu de novo com a perspectiva da sua chegada. Não que ele tenha vivido grandes perdas antes, mas chegou a embarcar por caminhos infelizes – e a sua vinda significava para ele a vida fresca de novo.

Nunca seríamos capazes de pensar na possibilidade do pai não chegar a conhecer o filho. A vida exagerou na dose.

O fato é que eu sempre me senti diferente e por um tempo lutei contra isso. Foi inútil. Queria ser convencional, mas não era para mim. As tatuagens que estampo no corpo falam muito pouco dessas diferenças. Aqui dentro existe uma mulher que já teve seus sonhos de princesa. Mas, se assim não me foi a vida, procuro levá-la da maneira mais divertida e mais sincera.

Pari você com a perspectiva de um namorado novo. Sim, porque eu sabia o que era a morte. Sabia que seu pai não ia me ligar de novo, nem me mandar um email. Eu já conhecia esse silêncio. Embora confesse que, vindo dele, me assustou.

Hoje: no papel, sou separada; de fato, sou viúva; na prática, sou mãe solteira. Convivo com uma presença que não me deixa esquecer a falta. E ainda assim me sinto uma menina.

Durante a minha vida, este parece ter sido o grande desafio: aprender a lidar com o tempo, entender que não sou a dona dele. Algumas coisas aconteceram tão tarde, outras, tão cedo. Ou muito de tudo ao mesmo tempo.

Mas quando olho pra você, filho, vejo que ainda tenho tanto tempo pela frente. Tanto tempo bom. Você tem tempo comigo e terá um tempo só seu. Não é preciso ter medo. É preciso aprender. Fazer as pazes com o tempo e entrar em sintonia consigo mesmo. E principalmente entender o que essas linhas tortas nos trazem de presente. Acho que estou no caminho.

domingo, 27 de janeiro de 2008

Forte como um cavalo novo.

Tínhamos assistido, em outubro, à peça "Por Elise", da Companhia Espanca. Linda, linda, linda. Densa e leve e ao mesmo tempo, surpreendente, sensível, inteligente, me tocou profundamente. Dias depois mandei uma foto de um trecho da peça para o seu pai, relembrando a parte que tinha me levado às lágrimas. Lágrimas que vieram novamente por dias e dias após a peça, inexplicavelmente. A resposta dele me faz sorrir e chorar ainda hoje, filho.

De: guifraga
Data: 7 de novembro de 2006 15h55min55s GMT-02:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: Pra relembrar, amor. Fico emocionada de novo.

vc é forte, com fogo de vida, correndo em direção aos seus desejos.
eu te admiro e amo.

um beijo, G


On 07/11/2006, at 15:49, Cristiana Guerra wrote:


“Sou forte como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar.”

Cristiana Guerra
Diretora de Criação
cris@solutioncom.com.br
31 2102-9335
www.solutioncom.com.br

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos.

Foi no final do ano passado. Eu comprava um presente de Natal e a vendedora sugeriu que eu participasse de uma promoção do shopping. Expliquei que não podia, pois trabalho na agência de publicidade que atende ao shopping. Ela rapidamente sugeriu: "Coloca o cpf da sua mãe". Expliquei que não tenho mãe. A coisa começou a tomar um rumo tragicômico quando ela sugeriu "Então coloca o cpf do seu namorado". Fui rasgada na resposta: "Morreu também". Insegura e já fechando a cara, ela tentou: "Seu pai?". "Morreu todo mundo", respondi rapidamente. Confesso que de vez em quando sou meio cruel. A mulher não olhou mais no meu rosto e ficou séria. Deve ter achado que era uma brincadeira de mau gosto. Sorte dela que eu não contei a história toda.

Por muito tempo, também achei que essa era uma brincadeira de mau gosto. Mas de vez em quando, filho, é bom sair um pouquinho de dentro da gente e ver as coisas pelo lado de fora. É até divertido.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Ironia.

Essa semana o Alexandre Inagaki, do Pensar Enlouquece (eleito o melhor blog do país pelo site bestblogsbrazil), colocou o nosso blog (esse aqui mesmo) na lista de indicações que ele publica toda semana. Fiquei feliz demais, filho. E, num atmo de inconsciência, tive vontade de ligar para o seu pai pra contar essa novidade pra ele. Saudade disso, filho. Do orgulho que a gente sentia um do outro.

Vestida me revelo.

O que me entristece, filho, é perceber que todos nós falamos línguas muito diferentes. Quando seu pai desapareceu, era esse o meu desespero: uma sensação de que eu não seria mais compreendida. Hoje me vejo procurando um novo caminho e sei que será longa a estrada. Até encontrar quem perceba que a minha urgência nada mais é do que a urgência de ter calma. Até encontrar quem realmente me veja.

Essa sensação que eu e seu pai conquistamos, esse descanso na loucura, é porque um enxergou o outro.

Tenho a impressão de estar de novo perdida. Como criança num grande shopping à procura dos pais. Luminosos por todos os lados, tudo aparentemente lindo, mas na verdade assustador. Com ele eu me sentia segura por poder ser eu mesma. Eu me sentia à vontade para não saber. Amávamos nossas imperfeições. Ríamos delas. E assim as acolhíamos. Por serem nossas. O amor de amar quem de fato éramos.

Quem sou. Essa mulher enlouquecida que se encanta pelo que é belo e novo, que ao invés de se esconder se mostra em sua fascinação pelo aparentemente fútil. Essa que escreve mais do que lê, em busca de si mesma. E que em suas palavras tantas vezes se encontra. Nunca alguém tinha me aceitado assim como sou. Tão inteira. Tão inteiro. E era maravilhoso amá-lo como ele era, só por ele ser ele. Tão poucas pessoas chegam lá. Lá que não é longe, ao contrário: lá que é dentro.

Um dia depois da morte do seu pai, fui tomada por uma sensação de que enfim eu ia mudar a minha forma de viver e me relacionar com o mundo. Por uma semana tive uma certeza: a de que eu não teria mais vontade de comprar roupas novas, que abandonaria o prazer de me vestir. Uma falsa sensação de abandono de mim mesma, como uma punição, como se eu tivesse passado a minha vida toda esperando por esse desfecho para “aprender” e mudar. Como se o acontecido tivesse me mostrado que eu estava no caminho errado. Mas em alguns dias me peguei barriguda, dentro de uma das minhas lojas prediletas, escolhendo um vestido que tornasse ainda mais bonita a minha gravidez. Era a minha forma de acreditar no futuro. Ao me olhar no espelho, eu via alguém que não estava esperneando a não aceitação.

“Quanto mais sabemos lidar com o sofrimento, mais bonitos nos tornamos”, escrevi outro dia no meu diário, não sei por quê. A cada dia, quando acordo, pinto um novo auto-retrato. A cada dia a roupa me pinta alguém diferente e eu gosto disso.

Perdi meu melhor amigo, aquele que me conhecia sem que eu precisasse falar. Mas não me perdi de mim, aquela era a prova. Ao acordar, arrumar a casa, me olhar no espelho, me fotografar, eu sentia como se seu pai tivesse me deixado como herança o seu amor por mim. Aquele amor que quando via cada nova roupa que eu comprava, dizia: “Você tem que fazer um acervo das suas roupas, amor. Colocando data, onde comprou, a coleção. Você tem muito bom gosto.” Ao me vestir bem bonita (eu fiz isso no dia seguinte, em homenagem a ele), eu transformo o amor que sinto por ele em uma casa florida de alegria e vontade de viver, em entusiasmo e inspiração para mostrar este mundo pra você, filho. Esse, que é cheio de imperfeições, mas é o nosso mundo.

Quero olhar para cada dia e desejar o que tenho. Quero estar sempre perto de você e de mim – não posso sentir falta de mim.

Por isso fiz fotos da gravidez. Aquelas das quais ele iria participar, mas não deu tempo. Fiz e fiz com alegria. Com a ajuda do meu amigo Dani, com o carinho das lentes do Fernando. E registrei aquele momento pelo qual esperei tanto, e que, mesmo em circunstâncias absurdas, era um momento maravilhoso. Você dentro da minha barriga, exalando uma beleza que eu nunca mais encontrei igual em mim.

Era eu cuidando de mim. Sou eu cuidando de mim. Para cuidar de você. Para cuidar de nós.


terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Vontade própria.

E agora você aprendeu a falar "neném". A gente pede "Fala Mamãe, Francisco", e você responde rapidamente: "Neném". Assim que eu gosto.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Mamamã.

Você já fala alguma coisa muito parecida com Mamãe. E não importa que você não saiba exatamente o que está dizendo. Há 37 anos eu sonhava ouvir isso. Filho.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Ontem.

Eu achava que seria um dia muito difícil, filho. Não tão difícil como há um ano. Há um ano era difícil digerir. Mas achava que seria um dia de lembranças duras, de saudade ardente, de imagens recorrentes.

Fiz um ritual, sim. Aliás, dois. Diferentes. Em respeito ao seu pai, ao momento, a você, a mim. Fiz silêncio por aqui. Silêncio de palavras, não de imagens. O que é uma forma de expressar. No contexto atual, aquele desenho que seu pai fez pra mim há muito tempo ganhou um novo significado. Mas todo mundo viu o quanto é lindo.

Eu achava que seria um dia muito difícil, mas foi um dia mágico.

De manhã, a babá saiu pra passear com você e voltou contando que uma menina deficiente que mora na rua brincou com você, depois entregou uma florzinha pra ela e disse: "Leva pro pai dele". Depois a campainha tocou: Sedex pra mim. Todo o carinho e o amor da minha amiga Jana foi entregue numa caixa. Intacto. Meus amigos da Lápis me receberam com um abraço cheio de energia. Era um dia importante pra todos nós. Recebi um email da minha amiga Márcia Lima que me esquentou o coração. Foi também com um email que uma das minhas irmãs, que mora em Campinas, pareceu ter voado ao meu encontro, como fez no ano passado. E falou no meu ouvido as palavras mais carinhosas. Outros irmãos e amigos ligaram, escreveram, deixaram mensagens.

À tarde cheguei de uma reunião e achei uma surpresa no computador. Umas coisas que o Dani encontrou como que por encanto na máquina dele – que já foi o computador de trabalho do seu pai. E assim ganhei de presente emails que trocamos enquanto éramos amigos. Pude guardá-los e lê-los com outros olhos. E esse dia tão importante foi marcado por uma música francesa – estava num dos emails que seu pai me mandou quando voltei de Paris (como eu disse, ele sempre arruma um jeito de falar com a gente).

Ao longo do dia recebi muitas mensagens de novos amigos que nos acompanham com o coração. Uma energia de amor chegou até nós com uma força impressionante. Uma menina que perdeu a mãe muito cedo me escreveu dizendo que o que estou fazendo pra você é muito precioso.

Descobri que a dor, quando compartilhada, constrói coisas. Alivia outras dores. Faz a gente se sentir perto. E assim se dilui.

Percebi que, hoje, a falta que sinto, na maior parte das vezes, não é mais dor.

Cheguei em casa, você me viu, abriu um sorrisão e pulou no meu colo. Parecia estar me esperando, pois quando fomos cantar juntos você soltou a voz como nunca.

Há um ano, era eu quem esperava por você. E não sabia exatamente por quem esperava. Há um ano eu não tinha você, sorridente, esperando por mim.

Mais tarde uma amiga me ligou brincando e cantando. Tinha festa na casa dela. Fui e só voltei hoje.

Um ano atrás, eu queria que esse dia chegasse logo. Porque tinha muito medo da imensidão de tempo que eu tinha pela frente. Pois esse dia tão temido chegou e a vida ficou mais leve.

Foi um dia alegre, filho. A vida é linda.

Créditos.

O desenho de ontem foi o seu pai que fez pra mim um dia, filho.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

O último 16 de janeiro.



Às 9h19, recebi um email do seu pai na agência: “Amorzinho meu, tenha um delicioso dia. Um beijo bom, G. tô com saudades.”

Na hora do almoço, surpresa: a secretária ligou dizendo que ele estava na recepção. Fazia um tempo que ele tinha dito que iria conhecer a nova programação visual da agência onde eu trabalhava como diretora de criação. Fui alegre buscá-lo no hall, mas o encontrei com uma fisionomia triste. Explicou que estava tenso com o trabalho e eu não pensei noutra possibilidade. Era assim mesmo que ele ficava no início da gestação de uma campanha.

No meu caso, eu estava gestando você. Trinta semanas de gravidez e você mexia sem parar na minha barriga. Eu só conseguia pensar na sua chegada.

A visita foi rápida. Eu ia almoçar com um amigo e nos despedimos. No final do expediente ele me mandou um email pedindo minha opinião sobre os primeiros layouts que fez para a tal campanha. Lindos, como sempre. Espero que dessa vez ele tenha acreditado.

Da agência fui ao shopping comprar coisas que faltavam pra sua chegada. Estava diante de uma vitrine quando atendi ao telefonema dele: “Você tá onde mais gosta, né, amor?” Ri, mas confessei estar triste comigo mesma por ainda ser tão consumista. Apesar dos 36 anos, ainda me sentia imatura para ser mãe. “Amor, estamos começando uma fase tão nova das nossas vidas”, ouvi sua voz dizendo. Rodei o shopping e mais tarde liguei contando que eu tinha comprado o bebê-conforto. Ele não gostou, tínhamos combinado de ele mesmo comprar, mas o preço era bom e meu senso prático falou mais alto. Combinamos de nos ver na minha casa mais tarde.

Antes de entrar na garagem do prédio, vi que ele me esperava na porta. “Que sintonia”, ele disse, pois tinha acabado de chegar. Depois de um abraço longo e silencioso, subimos pro apartamento. Na sala, ele parou pra observar a cortina que tinha acabado de ser instalada. Tinha me ajudado a pensar em cada novo detalhe da sala nova. Calado, fechou a cortina, olhou minuciosamente e demonstrou ter aprovado.

Vi que ele estava de fato triste. Chorando, pedi que ele me desculpasse. “Não é por não querer esperar você, mas há tanto tempo eu só conto comigo mesma, que não sei esperar o tempo do outro.” E continuei dizendo que aquele apartamento, a decoração nova, o seu quarto que estava para ficar pronto, tudo só fazia sentido com a presença dele na minha casa.

“O seu amor é tão bonito”, ele disse. Foi quando eu vi que ele também estava chorando. Sentados no sofá, minhas pernas no colo dele, suas mãos na minha barriga, sentimos você se mexendo mais uma vez. E ficamos um tempo abraçados.

O clima ficou mais leve quando partimos fomos testar a babá eletrônica que eu havia comprado. Foi divertido imaginar a casa já habitada por um bebê. Levemente irritado, ele percebeu que um dos sensores não funcionava. Separei o aparelho pra trocar no dia seguinte.

Eu disse que tinha fome, ele fez uma pizza rápida e, depois que eu comi, se levantou pra ir pra casa. Não sei por que eu não o chamei pra dormir comigo naquela noite. Costumávamos dormir juntos uma ou duas noites durante a semana e, nos fins de semana, de sexta a domingo. Mas eu não estava ansiosa pela sua presença. Vi que ele preferia ficar sozinho e isso era bonito entre a gente: respeitávamos o espaço um do outro.

Na porta, um abraço, talvez alguns beijos. Não me lembro de ter dito ou ouvido alguma declaração de amor. Antes de ir, ele me olhou de longe e disse “Parabéns”, sorrindo com os olhos. Demorei pra entender que era por causa da minha campanha aprovada naquele dia – que eu tinha passado o sábado inteiro criando.

E “parabéns” foi a última coisa que ele me disse. Depois desceu as escadas, eu fechei a porta. Como se houvesse amanhã.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Desejos.

Pequenos rituais são importantes nos momentos de passagem. Naquele 31 de dezembro, na praia, todos escreveram secretamente a sua lista de pedidos. Eu me lembro de ver seu pai já com o papelzinho dobrado, como se há muito soubesse o que queria – e como se o soubesse com exatidão. Depois de meses pensei nessa cena com algum ressentimento e, sempre, com muita curiosidade: o que será que ele pediu? Quanto a mim, passei um tempo insegura até dobrar o tal papel. Tive medo de esquecer alguém ou alguma coisa importante. Eu me lembro de ter pedido por minha família e meus amigos. Pedi saúde pra você. E pedi por nós, por esse amor que eu sentia tão raro e tão bonito: que ele fosse pra sempre, que nunca deixássemos de ser uma família. Devo ser justa. Meus pedidos foram atendidos.

De perdas somos feitos.

Minha mãe não conheceu o pai, mas teve mãe até o fim da vida. Meu pai também teve essa sorte. Em compensação, experimentou a perda do pai. Eu tinha sete anos quando meu avô morreu, mas nos conhecíamos tão pouco, que para mim não chegou a ser uma perda. O outro avô não perdi, já que não se pode perder o que nunca se teve: o marido de minha avó morreu quando ela tinha 23 anos, deixando-lhe três filhas, uma delas na barriga – essa era minha mãe.

Já minha outra avó perdeu uma irmã para ganhar um marido: justamente o viúvo da irmã, com quem se casou um pouco relutante. Por outro lado, teve a sorte de ver sua mãe completar 103 anos.

A morte dessa bisavó foi minha primeira grande perda, responsável por marcar minha estréia nos enterros. Eu tinha onze anos e tocava incessantemente o rosto dela no caixão, tentando entender a morte de perto.

Até meus 34, tive o privilégio de ter as duas avós. Mas tudo na vida tem um preço: uma perdeu a filha e outra, o filho, contrariando a ordem natural das coisas. Do meu ponto de vista, a perda da minha mãe e do meu pai para a mesma doença, com um intervalo de cabalísticos sete anos entre um e outro, não me soa nada natural. Perder os pais é coisa normal e corriqueira, desde que não seja com a gente.

Ao longo do tempo, fui percebendo que para cada um a perda tem uma cara e um tamanho.

Meu irmão mais velho perdeu a mãe, ganhou a filha, perdeu o pai e ganhou um filho. Meu outro irmão perdeu os pais e ganhou a chance de descobrir a força que tem. Minha irmã ganhou uma filha e perdeu a mãe, ganhou outra filha e se perdeu do pai. Depois ganhou uma terceira filha sem nem ter planejado - e então o pai se foi de vez. Com minha outra irmã, muito organizada, não poderia ser diferente: ganhou a filha, perdeu a mãe; ganhou o filho, perdeu o pai.

Meu ex-marido também perdeu o pai e, além dele, dezenas de cães que eram como parentes. Há pouco tempo, nos perdemos um do outro. Mas ganhamos outras coisas. Minha ex-sogra, por sua vez, perdeu o marido e o irmão no mesmo dia.

Tenho uma amiga que ganhou um filho, mas por conta do pai do menino perdeu a paz.

Minha amiga Adriana perdeu seu avô quando ele tinha 108 anos. Para alguns, ele já estava no lucro. Para ela, a dor foi proporcional aos anos vividos. Há pouco veio um golpe mais forte: perdeu um irmão de 32 anos. Passou semanas com o lenço na mão.

Minha amiga Kica ganhou dois filhos, depois perdeu o projeto de um terceiro e mais tarde, surpresa: ganhou duas filhas de uma vez. Pulou de dois para quatro.

Minha prima Fernanda esperou muito por um filho, que perdeu logo no início da gravidez. Mas tratou de encomendar outro rapidinho. É Luiza que já tem três anos.

Minha amiga Juliana perdeu o avô e depois a avó, ganhou uma filha e muitos hectares de terra. Não que eles substituam a geléia de goiaba e o biscoito de polvilho que a avó fazia. Mas a beleza da vista da fazenda não tem preço.

Meus pequenos primos Bruno e Laura perderam pai e mãe de uma só vez, sem ter idade para entender o que isso significa. E foi assim, perdendo um irmão, que minha prima Maria Regina ganhou dois filhos.

Minha amiga Cecília é meio sueca, meio brasileira. Quando está na Suécia, perde o que há de melhor no Brasil. Quando está no Brasil, perde as coisas boas do primeiro mundo. Resultado: está sempre de malas prontas. Mas depois de ganhar o filho Matteo, nada disso tem importância: desde que ele vá, todo lugar é seu.

Minha amiga Pi perdeu o pai em circunstâncias parecidas com as minhas. Nunca perdeu a classe nem o bom humor. E agora vai ganhar um filho.

Meu amigo Henrique perdeu a mãe, perdeu o pai, perdeu um grande amor, perdeu outros, perdeu até o rumo de casa. Há pouco ganhou mais um filho. E já encontrou novos caminhos.

Também aprendi a perder. Mãe e pai, pra começar. O dinheiro todo que gastei ao longo da vida, não considero perda. Perdi foi muita paciência. Tempo em discussões inúteis. Viagens. Algumas oportunidades. E um anel que desapareceu em casa, tempos atrás, de forma sobrenatural. Há seis anos perdi o nome de solteira e ganhei um mais bonito. Mas pra voltar a me encontrar, abri mão dele com prazer. Perdi dois filhos, antes mesmo de existirem. Depois ganhei prêmios pelos quais ansiava há muito tempo. Ganhei prestígio também. Há três anos perdi minha avó, amiga, luz, graça, almoço, domingo, caminha. Aos 95 anos, tinha a vontade de aprender dos dezoito. Mas sou egoísta: queria que ela ficasse muito mais.

Nos últimos quatro anos me separei, perdi dinheiro, casa montada, planos e muito mais. Encontrei seu pai pelo caminho e com ele vivi a forma mais intensa e urgente de amor. Inesperadamente, ganhamos você, filho. E enquanto você vinha, ganhei mais amor, carinho, cuidado, tudo o que alguém sempre sonhou ganhar na vida amando outro alguém. Mas, antes mesmo que você chegasse, surpresa: seu pai se foi suave e livremente, bem ao seu estilo, deixando um pouco dele em mim, levando um pouco de mim com ele. Perdi o amor, ganhei o filho - ficou o amor transformado em gente.

Não pensei que fosse possível ficar ainda mais órfã. A dor de minha outra avó, que eu citava com um certo orgulho, estava reservada também para mim.

Mas, é incrível: quando a gente perde alguém, não falta um pedaço. Esse alguém passa a fazer parte da gente.

E agora ganhei você: nasci mais uma vez. Sou eu inteiramente nova, embrulhada pra presente.

domingo, 13 de janeiro de 2008

Ele era bonito demais.

De: guifraga
Data: 15 de fevereiro de 2006 12h4min53s GMT-02:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: eu

oi amor, é só pra te mandar uma foto minha. A Telida que tirou. (foto verdade, não contém retoques)

com amor, G

sábado, 12 de janeiro de 2008

Hoje cedinho.

De: guifraga
Data: 12 de junho de 2006 9h46min4s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: hoje cedinho

acordei pensando tanto em você.

um beijo bom, Gui

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Estávamos separados, fazia pouco mais de vinte dias. E eu me lembro como se fosse agora: do friozinho na barriga ao abrir minha caixa de emails e encontrar este aí em cima. Hoje, senti uma coisa muito parecida ao passar em frente ao apartamento onde seu pai morava. Coração, quando ama, pensa até nas impossibilidades.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Corações.

Tem dias que é especialmente difícil olhar pra você e não desabar pela ausência do seu pai. Dias como hoje pela manhã, em que você comia seu pedacinho de pão sem tirar os olhos de mim - aqueles olhos que, apesar de terem muito dos meus, olham fundo como os do seu pai. De dois em dois minutos você dava aquele sorriso largo que, você já sabe, derrete qualquer um. Fico a imaginar o quanto ele perdeu, filho. Penso na cara deliciosa que ele faria com você no colo. Não fico pensando nisso. Mas de vez em quando lembro e dói. Dói a falta que ele me faz, sim. Mas hoje doeu especialmente a falta que ele faz a você, a falta que você fez a ele. E como que para retribuir aquele tempo em que seu coração bateu por nós dois dentro de mim, sofro no seu lugar. E no lugar dele. Por essas faltas que não são minhas, mas que já fazem parte de mim. Mas eu reconheço que sou privilegiada. Vocês se perderam um do outro. Eu tive a sorte de ter os dois.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Divina tecnologia.


Você nasceu na era da internet, filho. E talvez um dia ache isso muito comum. Mas para nós, nascidos nos anos 70, isso acontece feito mágica. Como um dia abrir esse blog e encontrar nos comentários um amigo de infância do seu pai. Alguém de quem ele já tinha falado muitas vezes, mas que não via há muito tempo e, por isso, nunca teve a chance de me apresentar. Com o Marcel e com o Tio Vítor, seu pai viveu grandes aventuras. E meses atrás chegou às minhas mãos essa foto dos três, que mais parece um quadro. Pois algum tempo depois, aqui, nesse espaço que não é físico, eu e o amigo do seu pai nos encontramos por acaso. E os nossos corações falaram emocionados sobre uma mesma pessoa que conhecemos em tempos diferentes. "Com 11 anos ele já tinha uma veia poética, pois terminava as cartas me chamando de 'amigo dos amigos'", ele me contou. Não é maravilhoso, filho? Não paro de encontrar motivos para amar seu pai. E ainda tenho tanto dele pra conhecer.

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Rir, rir, rir.


Tava vendo umas fotos que fiz hoje pro meu blog de moda e entendi por que eu e seu pai nos dávamos tão bem. A gente era palhaço o mesmo tanto, filho. Até no jeito de corpo. Acho que você também vai ser.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Palavras reveladoras.

"Uma fofura. Um amigo. Uma flor. Uma pedra preciosa. Um abraço. Um doce. Uma perfeição. Uma bondade. Um charme. Um homem. Umas palavras. Uns gestos. Uma voz. Um olhar. Uma gentileza. Uma delicadeza. Um sem igual. Se uns 10% da população fossem iguais a ele, talvez o mundo tivesse solução."

Foi o que escrevi como depoimento na conta recém-inaugurada de orkut do seu pai, tão logo eu aderi à modinha. A gente não tinha absolutamente nada um com o outro, a não ser uma grande amizade. Alguns meses depois eu estava sentindo o mais arrebatador sentimento que eu já tinha experimentado.

Preciso prestar mais atenção no que escrevo, filho. Minhas palavras me dizem coisas surpreendentes.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Estamos na imprensa, filho.


Em matérias diferentes nas revistas Criativa (Editora Globo) e Gloss (Editora Abril) de janeiro. É mais gente com quem compartilhar a nossa história. Se tem sido tão bom pra mim, pode ser bom pra muitas outras pessoas.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Só pra ilustrar.

O email que mandei:

On 18/04/2006, at 17:27, Cristiana Guerra wrote:

Amor,

Temos um coquetel hoje.
Ótima oportunidade para estrear meu vestidinho.

Vamos?

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A resposta do seu pai:

De: guifraga
Data: 18 de abril de 2006 17h54min11s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: Convite Ogilvy

Pra ver o sax tocar.

Hoje amanheceu um dia lindo e fomos passear na Praça da Liberdade. Seu pai talvez nos levasse a um lugar mais original, mas eu particularmente ainda gosto muito desse pedaço da cidade. A primeira vez que estivemos lá foi muitos meses atrás, eu, você e a babá, mas era inverno e fomos embora logo porque ventava muito. Passeamos e as fontes estavam especialmente bonitas com a luz do sol. Quando passamos para o lado do coreto, não havia nenhuma programação musical. Mas um homem estava sentado num banco da praça tocando "Como é grande o meu amor por você" no saxofone. Lembrei que há pouco tempo eu soube que seu pai já tocou sax, além do piano. Não tivemos a chance de ele tocar pra mim, mas música era uma forma de a gente se comunicar. E uma vez ele me enviou essa por email. "Me desespero a procurar alguma forma de lhe falar como é grande o meu amor por você". Nessas horas eu sempre penso: mesmo tendo ido há quase um ano, ele sempre arruma um jeito de falar com a gente, filho.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

Amor e Humor moram juntos.

De: guifraga
Data: 11 de outubro de 2006 9h32min16s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: A granola encantada.

amor, que goshtoso!!!!
fico feliz demais que vc tenha gostado. amo você, linda.

um beijo bom e visionário
Gui


On 11/10/2006, at 09:50, Cristiana Guerra wrote:

Amorzinho, que granola mais gostosa. Comi com prazer e, quando vi, já estava colocando mais.

O Francisco, antes mesmo de conhecer o pai, já é seu fã.
Afinal, você foi responsável pela primeira obra importante na vida dele:
a implantação do serviço de limpeza urbana próximo ao seu local de moradia.

Um visionário, praticamente um JK.

Que carinho, amor. Você é o máximo.

Um beijo, bom dia.

Cris.