quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Ballet.

Um ovo quente com torradinhas cortadas em lascas, dispostas no prato como uma fogueirinha. Foi assim na primeira vez que seu pai preparou um prato pra mim. E o mesmo carinho estava em cada prato que eu o vi preparar depois.

Mesmo um simples sanduíche. Mesmo uma sopa knorr. O nhoque de batata amassada no garfo. O molho de tomate desde o descascar. Mesmo, e com toda a arte, o seu bom gosto em cada centímetro.

Eu me lembro de observar o movimento de suas mãos a cada vez que ele preparava alguma coisa na cozinha. E elas cantavam. Dançavam carinho. A cada ingrediente, um beijo: na maçã do rosto, na testa, na ponta do nariz. Na colherada de arroz, essas mãos nos serviam declaração de amor.

Sim, porque esse não era um privilégio meu. Suas mãos assim faziam para cada um de quem ele gostava. Cozinhando para quinze, vinte pessoas, passava o tempo na cozinha, ora conversando com um, ora com outro, ora sozinho com o amor que lhe temperava os pratos. E aquele era seu deleite e sua alegria. Amar com as mãos: servir os pratos um a um, colocando em cada um deles o seu gosto pela vida.

Suas mãos também desenhavam. Selecionavam músicas e me puxavam para dançar. Escolhiam flores para surpreendentes buquês. Ao escrever, entregavam o charme suave do escritor. Mãos que ora remavam, ora acendiam o cigarro. Mãos que me enxugavam lágrimas. Mãos que contavam piadas. Mãos que me abraçavam forte na hora de dormir, e que não adormeciam enquanto não cobrissem minha orelha. Que discavam meu número e davam à voz o seu lugar. Compunham mensagens com uma doçura antiga, num mundo moderno e celular – posicionando cada ponto e cada vírgula, sem perder um dedo de autenticidade. Mãos espontâneas e bailarinas. Mãos que passeavam pelo ar, cheias de vida e de amor.

Mãos que me seguravam o rosto no beijar. Eu era dele a cada beijo. Éramos um do outro num amor que nada tem a ver com posse.

Mãos que um dia se encontraram para seguir outro caminho. E que pareceram largar as minhas. Que não puderam tomar as suas. Mãos que teciam danças. Ainda ouço as músicas – e me guio por elas.

Agora me dê as mãos, filho. E saiba que as suas lembram muito as do seu pai.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Tatuada em mim.

Outro dia encontrei uma troca de emails entre mim e seu pai, de quando éramos apenas bons amigos. Surpresa foi lê-lo falando da minha delicadeza. Até há pouco tempo eu achava que ele é quem tinha me ensinado essa palavra. Se não me ensinou, lapidou em mim essa virtude.

Delicadeza do abraço a cada manhã. Do email de bom dia. Do humor amoroso. Da distância saudável. Da intensidade que fazia lugar para que respeitássemos nossos espaços. Delicadeza das coisas miúdas vistas com um olhar de amor. Do cuidar do outro sem querer fazer o outro ao nosso molde. Momentos simples que faziam a vida ficar grande.

Talvez por isso eu escreva tanto. Acho que o nosso amor impressiona pela delicadeza. Claro, filho, tivemos nossos problemas. Nossa história começou num momento ingrato. Mas nesses dois anos, o que em tempo parece pouco, uma delicada revolução se fez em mim. Nas nossas vidas. Uma revolução que foi plantada em minha barriga e nasceu nove meses depois.

Você é síntese. Semente daquilo que falou mais alto – embora com voz bem suave.

O sentimento que tenho é de encantamento. Do começo ao fim. Talvez porque não tenha começo nem fim. É delicadeza viva e forte. Pulsando em você, pulsando em mim.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Nonada.

2005. Ele de férias em Trancoso, eu em Belo Horizonte, trabalhando. Na praia, ele relia o Grande Sertão. E de minuto em minuto chegava uma mensagem no meu celular. Era ele compartilhando comigo trechos do livro. “Amor vem de amor”, dizia uma delas. E no espaço da distância, o amor crescia. Partilhar o livro com alguém lá longe, debaixo do sol em pleno paraíso. Como não amar mais e mais essa delicadeza? Amor vindo de longe. Amor vindo de amor. Não era um livro qualquer, filho. Como também não era qualquer o nosso amor.

Grande Sertão.



De: guifraga
Data: 28 de novembro de 2006 11h11min39s GMT-02:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: Re: Nonada.

Ele pode ficar com uma e dar a outra pro filho dele, amorzinho.


On 28/11/2006, at 11:03, Cristiana Guerra wrote:

O Francisco vai herdar duas edições entre as 10 mil.
Vai ser bom pro futuro dele.


On 11/28/06 10:50 AM, "guifraga" wrote:

Meu amor, bom dia, linda.
Que gostoso vc tb ter o livro, amor.
Eles devem receber mais, mas a editora não vai fazer outra edição comemorativa, não. São só 10.000.

Amo você.

Adorei seu beijo e quero mais... hoje


On 28/11/2006, at 10:35, Cristiana Guerra wrote:

Bom dia, amorzinho.

Já passei lá na Travessa, de guarda-chuva em punho, pra garantir minha edição do Grande Sertão. O que você tinha separado não estava mais lá em seu nome, mas nem questionei, pois sem colocar nenhuma dificuldade e sem que eu precisasse falar, o cara vendeu pra mim um outro que estava separado para outrem. Eu sabia que isso ia acontecer. Parece que eles vão receber mais. Avisa pro pessoal aí, se quiser.

Amor, o seu olhar melhora o meu.

Um beijo meu, bem gostoso, de língua, que nem aquele que a gente deu outro dia.
E um do Cisco, babadinho, na sua bochecha.

Cristiana Guerra
Diretora de Criação

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Fui para uma ilha e levei seu pai.




Chovia.
Era assim o nosso paraíso.
Não sabíamos que era despedida.
Por isso rimos – o tempo todo.
Melhor assim.

Amor que não cabe, filho.
Hoje meu coração está aceso de saudade.
Lateja e brilha, dói e sorri.

Amor, amor, amor.

Hoje sou poesia.
Sou verso, não tem mais volta.

Melhor assim.

Enquanto.

Enquanto Dinah canta, escrevo.
Enquanto escrevo, você dorme.
Enquanto você sonha, eu me lembro.
Enquanto olho para trás, você imagina o que vem pela frente.

Enquanto você descobre, vasculho.
Enquanto eu procuro, você encontra.
Enquanto você aprende, penso que ensino.
Descubro que aprendi.

Você começa,
eu recomeço.

Enquanto ele parece se afastar,
cresce dentro de mim.
Você cresce – fora de mim.
E eu me aprendo.

Você cresce,
eu também.

Enquanto:
gerúndio que
não é verbo.
Coração pulsando.

Nós dois
de mãos dadas.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Despertador.

Ele sonhava. Viajar de navio, ter um barco, construir casa na Serra do Cipó, comprar um piano e voltar a tocar, construir pra você uma casa na árvore. Eu já tinha a companhia dele, já tinha você na barriga. Com o que mais sonhar? Era assim que minha mãe tinha me ensinado. Eu teria dito a ele o mesmo que disse o personagem do Mark Rufallo no lindo "Minha vida sem mim": "O mundo parece menos assustador porque você existe". Talvez eu tenha dito, em outras palavras. Mas então ele deixou de existir. E tive que descobrir que outras coisas podem fazer do mundo um lugar mais acolhedor. Você existe, eu existo, meus amigos e tantos detalhes para os quais eu não tinha olhado antes. Tantas descobertas no meio da dor. Aprender, mesmo que tarde. E agora alguma coisa me diz que alguns dos sonhos dele não podem se perder. Comecei a sonhar, filho.

Nós e os dias 17.

Hoje faz cinco anos que eu e seu pai nos vimos pela primeira vez. Eu voltando a trabalhar na Lápis, ele começando por lá, ainda como free lancer. E nós dois sentados numa sala pra começar um trabalho juntos. Eta, vida doida, meus Deus.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Descobri por que você ama Marisa Monte:

Está neste email que mandei para o seu pai em 13 de setembro de 2006:


On 13/09/2006, at 09:58, Cristiana Guerra wrote:

Bom dia, amorzinho.

Hoje acordei bem, tinha dormido profundamente a noite toda (nem acordei pra tomar água) e saí cedinho pro Reiki. No caminho, Marisa Monte cantando um samba no carro, senti uma felicidade tão profunda. O dia tava lindo, eu tava tão feliz e alegre, e essa sensação se misturava com uma vontade de chorar. Pensei na minha vida, nas pessoas com quem convivo, nas pessoas que já se foram, no quanto a vida é linda e boa. Não me falta nada, amor.

Tenho saúde, amigos, um bebê lindo na barriga, filho do homem que eu amo. E tenho você ao meu lado.

Só tenho a agradecer por ter essa vida linda e por amar você.

Um beijo bom.

Cris.

Cristiana Guerra
Diretora de Criação


sábado, 9 de fevereiro de 2008

Metáforas.

Você sabe deixar claro o que quer e o que sente. Fica difícil saber a quem puxou, pois brava eu sou e bem bravo era o seu pai. Hoje você ficou bastante contrariado. Não era para menos: tirei você do banho justamente no seu momento mais feliz. Era hora de dormir, filho. Tão cedo a vida nos dá as dicas e tão tarde a gente aprende a aceitá-las. A vida fez exatamente a mesma coisa comigo ao tirar seu pai de mim. Era hora de dormir ou de acordar? Você, no minuto seguinte, já tinha esquecido e estava sorrindo. No meu caso, demorou mais um pouco. Preciso confessar, filho: eu estava no meio do banho mais gostoso da minha vida.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

E como falo.

Não falo de um amor perfeito, filho. Falo de um amor real. E essa talvez seja uma de suas grandes qualidades. Falo de um encontro, de um acreditar. Não falo de planos, prestação de apartamento, lote para construir, projeto do quarto do bebê. Não falo de planejar a próxima viagem de férias. Falo de uma sinceridade. De um estar inteiro, a cada momento em que se decidia estar. Falo de um sorver a vida como se bebe vinho ou café quentinho. Falo de muitos sins e também dos nãos. Nãos que também eram de amor. Falo de uma certeza que tinha curto prazo de validade, mas renovável a cada dia. Falo de cada novo dia em que era bom não ter a certeza, para de novo merecer o desejo. Falo de um desejo que nascia a cada sol. Falo de uma construção. Que foi dura. Falo de amor porque antes falo de amizade. Falo de corações puros, no sentido menos ingênuo da palavra. Falo, não porque ele não está mais aqui. Ele sabe do que falo. Falo de mim, falo do seu pai, falo de nós. Falo de você.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Fica o som da risada.


Ilha Grande, 28 de dezembro de 2006. Segundo seu pai:
os pés da princesa prestes a serem atacados pelo pé-monstro.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Sábados.

Difíceis são algumas noites de sábado. Quando você adormece e a noite vem trazendo o silêncio da falta. A falta dos momentos em que eu e seu pai dançávamos. A falta do cheiro da comida que ele preparava. Difícil é não ficar horas falando sobre as bobagens que na verdade são as coisas mais importantes da vida. Ele sentado no computador, pesquisando na internet sobre alguma viagem de barco, e me chamando com voz doce:

— Amor?

— Oi, amor.

— Você é o meu amor.

E eu corria para apertá-lo, abraçá-lo, o beijo no meio da risada. E a brincadeira se repetia por mais algumas vezes. A gente rindo do amor, rindo da alegria. A alegria de não ter hora, a leveza de não ter medidas, a liberdade de ser e sentir. A sorte de encontrar alguém com quem se sentir tão à vontade.

Difícil é não ter saudade desse nada pra fazer dos sábados a dois.

Você vai crescer, vai ficar adulto, vai aprender que deve ser um homem sério. Mas um dia vai descobrir de novo que as melhores coisas da vida não servem para nada. Que o melhor da vida é contar estrelas, histórias, piadas. Que a inutilidade é mesmo uma delícia.