quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sobre samba, alegria e despedidas.

Outro dia eu relembrava com um amigo a cena que teria sido a mais cinematográfica da minha vida com seu pai – e foram muitas.

Já contei pra você que naquele 17 de janeiro, bem na hora do enterro, cantei pra ele um sambinha do Nelson Cavaquinho. "Graças a Deus, minha vida mudou. Quem me viu, quem me vê, a tristeza acabou. Contigo aprendi a sorrir, escondeste o pranto de quem sofreu tanto. Organizaste uma festa em mim e é por isso que eu canto assim: la la laiá, lalaiá, lalaiá..."

Parece incrível que uma grávida vestida com um tomara-que-caia preto tenha tido presença de espírito pra cantar diante do corpo do pai da criança que estava em sua barriga. Hoje, dois anos e meio depois, ainda me assusto por ter tido essa coragem.

Acho que nesse dia a vida me ensinou o senso de oportunidade. Era preciso, não podia ficar pra depois. A hora da homenagem era aquela, e eu tinha uma vontade de dizer pra todo mundo o quanto eu tinha sido feliz com seu pai. Disse. Com todas as letras e notas, diante de uma plateia que talvez tenha se dividido entre a emoção e o deboche.

Mesmo que eu e ele tenhamos sofrido muitas vezes antes, mesmo que eu viesse a sofrer muito a falta dele depois. Aquela era a hora, e eu soube viver aquele único momento com inteireza, sem pensar no futuro ou sofrer por antecipação. Fiz com satisfação porque eu carregava em mim um coração agradecido. Ou melhor, dois.

O samba tinha sido enviado pelo seu pai a mim, no início do amor, e eu sabia o que ele queria dizer com isso. Depois de alguns anos vivendo um amor calado e sem resposta, em que a mulher dele só tinha tempo pra trabalhar, ele havia encontrado uma companheira tão aberta para se dar quanto ele. E isso era pura alegria.

Houve também um disco da Marisa Monte, "Universo ao meu redor", que me fez companhia enquanto eu e seu pai estávamos separados, fazendo dos ouvidos a porta de entrada para a esperança e o gosto, de modo que os dias melhores vieram, como se eu os tivesse previsto. Depois, quando seu pai já não estava mais aqui, ouvi esse disco exaustivamente de novo, dessa vez com você no colo, e começava ali mais uma história de amor: a nossa.

Hoje, tempos e amores depois, resolvi colocar o mesmo disco pra tocar aqui na mesma sala, num dia de tristeza inédita. Ou de uma velha melancolia, exibindo as feridas que ainda habitam em mim.

É incrível como fui capaz de esquecer desse antídoto, como se eu estivesse apegada às dores que me assaltaram de algumas semanas pra cá – e a dor tem os seus encantos. E de novo descubro que em mim existem sorrisos de verdade, e com as notas procuro fazer a esperança espantar o medo, esse que desenha um futuro escuro como numa tentativa de nos proteger de alguma decepção – mas o faz de um jeito burro, porque é muito melhor ter esperança que deixar de viver a felicidade por medo de ela acabar.

O samba ensina entusiasmo, filho. Mesmo que fale de acontecimentos tristes, desamor ou abandono, ele canta a alegria que virá, inevitavelmente, porque a vida é mesmo em ciclos. Quem canta um samba lembra que a vida é agora, e se despede da tristeza com graça, antecipadamente, como quem coloca vassoura atrás da porta, confiante de que assim a visita indesejada vai logo dar um jeito de ir embora.

Cantar e sambar é um jeito brasileiro de acreditar no futuro, em notas que choram docemente, lembrando que satisfação é estar vivo e que isso deve fazer algum sentido.

E é assim que hoje, ouvindo samba, decidi começar a caminhar de novo, mesmo com os pés doendo: com a certeza de que em pouco tempo vou encontrar um lugar pra me sentar, tirar os sapatos e apreciar a estrada. Para depois dar mais alguns passos descalça e, com novos calos a proteger os pés, descobrir caminhos que nem estavam no mapa, e voltar ao prazer da viagem.

Lá na frente, quem sabe eu mesma faça um sambinha, cantando em humor as vezes que errei o caminho – e de como foi bom aprender.

domingo, 20 de setembro de 2009

Uivo.


No carro, eu e você seguíamos ouvindo essa música da Emiliana Torrini, do CD que ganhei de presente da Nina, lá da Alemanha. Por volta de 1 minuto e 50 segundos, ouço você cantando junto – como um pequeno lobo dando o seu primeiro uivo. Cantar está no seu instinto, filho. E isso é muito emocionante.

domingo, 6 de setembro de 2009

Identidade secreta.

Em nossos passeios no fim de semana saio de casa carregando a minha bolsa, a sua e um brinquedo – e ainda sobra mão pra levar você no colo. Sou a Mulher-elástico, a mesma que, enquanto dirige, estica os braços pra lhe dar a chupeta. Pra fazer você rir, busco o Didi Mocó que mora em mim. Nas muitas vezes em que você me surpreende, sou ninguém menos que a Supermãe. Mas quando você faz das suas, explodo como o incrível Hulk. Na volta pra casa, carregando cansaço e sacolas, quem lhe dá as mãos é o Homem-aranha. O mesmo que resgata o menino que de vez em quando se solta da minha mão e sai correndo. Ao final de um domingo, quando o silêncio toma conta da casa, minha verdadeira identidade se revela: sou só uma menina sonhando com um príncipe encantado que me leve no colo até a cama. Isso, até ouvir seu choro no meio da noite: voo até o seu quarto como o Super-homem. Depois volto a dormir.