quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Francisco.


Quando o seu nome me veio à cabeça, foi muito antes de você existir. Antes até de amar seu pai. Há muito mais tempo eu sei de você, Francisco. E amo desde o seu não-projeto de vir. Você, seu humor, sua alegria. Eu já sabia, mas não sabia que sabia. E foi assim, sem saber, que procurei e fui achada. Foi você, dentro de mim, que fez nascer o seu pai na minha vida. Para poder vir através dele. Obrigada por parir seu pai, filho. E assim me dar a mim mesma de presente.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Tapa.


Não tenho mais parado pra pensar na saudade. Ela é que de vez em quando salta na minha frente. Uma foto que eu não tinha visto antes vem me contar uma novidade sobre o que já vivi. O braço do seu pai encostado ao meu, veias pulsando vida, um corpo quente e perto que me conta sobre o amor. Lembro então o que era ser completa. Reconheço uma cumplicidade que eu já não lembrava existir. Da alegria daquele dia, com a perspectiva tão fresca da sua vinda, da euforia de todos à nossa volta, faço um álbum bem bonito. E guardo num canto escondido, mas tão escondido, que corro o risco de procurar e não achar. E quando acho, dói. Mas dói bonito. Junto com a dor vem uma sensação de alívio por ter vivido.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Notas.

Quando eu era menina, sonhava ser modelo. Depois entendi que talvez quisesse mesmo era ser atriz. Acabei não sendo nenhuma dessas coisas, mas na minha profissão às vezes eu tenho chance de exercer essas facetas. Com o tempo entendi que eu não tinha que esperar o mundo me aprovar: simplesmente ia lá e fazia. Foi assim que resolvi fazer aula de canto. Não tenho voz de cantora, mas tenho ouvidos bons. Acho que você também tem, filho. Todo dia você me dá provas de ter herdado isso. De mim e do seu pai. Ele, sim, tinha uma voz linda. Além de afinação e um gosto apurado para música. Se a nossa história virasse um filme, a trilha sonora já estaria escolhida. As músicas que enviávamos um para o outro fazem um conjunto delicado que poderia ser chamado de "Nossas cartas". O fato é que um dia, muito antes de conhecer seu pai, eu fiz aula de canto. E cantava direitinho, cheguei até a participar de shows na escola, do coral. É claro que eu ficava humilhada diante de vozes aveludadas e potentes que faziam aulas comigo. Sei que os professores nunca me olhavam como alguém que queria seguir carreira. Desconheciam esse meu jeito atirado de acreditar nas coisas. E o que seria dos meus queridos João Gilberto, Tom Jobim, Chico Buarque e outras finíssimas vozes femininas se não fosse a coragem dos próprios para cantar? Mas como os outros, esse meu sonho não foi longe. Junto com eles acabei guardando também o de ser mãe. Aos 35, cheguei a acreditar que não era para mim. Só se viesse feito mágica, de surpresa. E foi o que aconteceu. Você veio e fez dos últimos sete meses de vida do seu pai aqueles em que ele voltou a fazer planos, voltou a sonhar. Sua ida repentina foi apenas outra grande surpresa da vida. Os meses em que estivemos juntos, nós três, foram plenos. Como é pleno ser sua mãe. E hoje, eu o descubro meu fã. Percebo que minha voz parece encantar seus ouvidos. Eu canto e você canta comigo. Eu nunca ousaria sonhar isso, filho. Justo esse que era o sonho mais bonito.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Mamãe chorou.

Ontem tomei vinho com grandes amigas e chorei que nem você, filho. Mas não era fome, nem sono, nem birra, nem manha. Era saudade mesmo. A morte deixa uma dor que não tem cura.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Os meus.


Meus pés, numa foto feita pelo seu pai. É com eles que podemos contar agora, Cisco. Confesso que às vezes eles vacilam. Mas a gente vai dar um jeito de chegar lá.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

Passos.

Na primeira vez que ele tirou os sapatos, senti que ele tinha vergonha dos pés. Dias depois ele me contou que nascera com os pezinhos tortos, virados para trás. A mãe dele tinha sonhado, na véspera do parto, que o bebê nascia sem os pés. É fato que eles moravam no Piauí, e os pezinhos tortos acabaram por determinar uma parte do destino da família. Era com os olhos cheios d´água, a voz trêmula e também com uma pitada de humor que ele me contava da luta dos pais para enfrentar o problema, da massagem com óleo quente que doía mais no pai do que no filho, da ida para São Paulo para a primeira cirurgia, aos quatro meses, da infância de gesso, dos primeiros passos a despeito disso, dos natais no hospital longe da família, de uma luta incessante até a última cirurgia, aos quatro anos. Hoje, é o pai dele, seu avô, quem me conta que durante todo esse tempo o sorriso não lhe saía do rosto - e vejo então o que é um pai apaixonado. Por um menino que nasceu e morreu de bem com a vida. Fico a pensar aonde aqueles pezinhos o levaram: o quanto a sua alma talvez seja ainda mais linda por isso. Eu amo a história do seu pai, filho. Tenho orgulho dela. E de vez em quando beijava aqueles pés, que eram só o início de um universo de intensidade, hedonismo, amor. Eram os pés feios mais lindos do mundo. É uma pena ele não ter visto você nascer com esses seus pezinhos perfeitos. Que agora assumiram o posto de mais lindos do mundo.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Ouvidinho bom.

Hoje você ouviu um disco novo comigo: "Dinah Washington plays the standards". Mal o cd começou e você já começou a cantar. Sinal de aprovação. E dessa vez eu nem estava cantando junto. Dançamos do jeitinho que eu dançava com o seu pai — eu tentando dar os passinhos que há muito esqueci. Difícil não ter os passos dele para acompanhar. Agora é você quem acompanha os meus. Mas é bom, intenso, delicioso: sou eu grávida de você de novo. Vamos fazer isso enquanto eu agüentar carregar você. Depois a gente troca. Amor.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Feito tatuagem.

De: guifraga
Data: 4 de maio de 2006 15h9min43s GMT-03:00
Para: Cristiana Guerra
Assunto: estudos de desenho pelo corpo de alguém amado

amor, comecei fazendo um desenho que, na composição, tinha algo parecido com o que querias... Não, não tem outra coisa senão as volutas, mas é que soltei o traço.
Depois te mando só a tatuagem.

bj, Gui

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Imagens.

Eu me lembro, filho. De uma sensação de que eu não ia dar conta. De que tudo ia perder a cor, o som, o sentido. Mas eu me lembro também de uma surpresa. A surpresa de ver o tempo passar e a vontade continuar em mim. E a vontade crescer. Também como uma resposta, também como um chamado. Eu me lembro da peixinha do "Procurando Nemo" cantando alegre: "Continue a nadar, continue a nadar!". Eu me lembro de perceber que nem pensei em desistir — e de me espantar com isso. Não pensei. Por você, sim, mas também por mim. E porque finalmente o medo tinha ido embora — também ele. Eu me lembro de uma vontade de achar motivo pra sorrir de novo. E me lembro disso como se tivesse sido há muito tempo. Porque hoje, mesmo convivendo com o silêncio insuportável que me grita todos os dias, mesmo assim: tem o som da sua risada que é música, tem o seu sono que é o melhor silêncio, o silêncio de existir. Eu me lembro todos os dias, mesmo carregando o meu cantinho escondido, que ainda assim sou mais feliz. É que quando eu olho pra você eu lembro de mim.