quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Para seu pai.

Você partiu no início de um novo ano.

Fazia muito pouco tempo que eu havia escrito uma lista cheia de desejos bons para o ano que ali começava. Lista modesta, de poucos itens – eu já tinha tudo o que queria.

Foi difícil aceitar que, nos tantos dias que viriam pela frente, ao invés de cuidar da lista, eu faria uma contagem regressiva, na torcida para que passasse logo a dor aguda. Cheguei a pensar que eu estava condenada a senti-la para sempre.

Dois meses depois, você se reinventou. Nasceu de novo, de mim. Nasceu outro. Outro que eu imaginava não conhecer.

Tive o privilégio de um ano em que nada era pequeno. A dor cantava um amor que não cabia em mim. Mas a vida latejava mais forte. E era grande demais a vida que eu guardava em mim. Renascemos em Francisco, eu e você. E ele ainda trouxe algo novo: um milagre só dele.

Faz quase três anos. Ele já é um menino. Tem a idade da falta. Mas veio para marcar uma presença nunca sonhada. Veio para me desabrochar.

Do Francisco eu me pari mil vezes. Nova, diferente, corajosa. Atirada, confiante, inteira. Aquela urgência que eu não compreendia era a minha urgência de ser.

A passagem de um segundo a outro nunca foi tão definitiva. O tempo agora vale mais. É absolutamente necessário que cada momento seja bom e simples. Sigo nesse exercício – que é de sabedoria, mais que de força. Da criança que chorava à toa, tornei-me a mulher que ri de si mesma. Sou uma mulher que sorri.

Os segundos seguem em fila, dando-nos a ilusão de que se repetem. Um a um, traçam seus propósitos e, rápidos, parecem não deixar rastros. A não ser alguns deles – e quem saberá quais são?

Num segundo, posso já não estar. Num segundo, tudo pode já não mais ser. Não é preciso apostar para estar sempre correndo o risco. Da intensidade. De me emocionar. De perder tudo. De ganhar muito. Os segundos vêm para falar da grandeza do que já temos.

Essa medida sutil do tempo é o futuro que não existe. A vida, que por ser grande é simples. Eterna e etérea. Sua ida me ensinou isso: cada batida do relógio é réveillon.

Eu achava que a minha dor nunca iria passar. Vieram outras. E outros desejos, sonhos imprevistos. Vieram desafios. Sem que você precisasse ir. Você permanece – e nunca, nunca é excludente.

Permanece o Francisco. Nosso milagre. Meu delicioso desafio. Vida que é falta e presença. Eu e você. Ele mesmo. Que já nasceu traçando história.

Ainda não conto histórias para ele. É ele quem me conta a minha. Ele é que me conta de você.

Não sei para onde escrevo, mas sei que você me lê. Pois lhe faço um pedido de ano novo, emprestado de uma pessoa amada por alguém que foi um presente em 2009: "Quando varrerem estrelas, pede para jogá-las sobre nosso telhado." (Yeda Prates Bernis)

De cá, eu e Francisco acendemos estrelinhas, na esperança de que cheguem até você. Amor que brilha.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Quero lhe dizer, filho.

Que de meus irmãos vi trechos de filmes, livros, discos, secos, molhados, laranjas, mecânicas, corpos que falam, escondida atrás da poltrona. Que de minhas irmãs assisti amores, sandálias de tiras, secadores barulhentos, espelhos indecisos, portões e eu te amos. De meus pais ouvi vozes sem brilho, silêncios velados, o som alto da TV e uma resignada ordem das coisas. (Mas no meio disso tudo eu vi amor.) Quero lhe dizer que de mim mesma vi muito e tanto, sem saber o que fazer com. Que de mim mesma escrevi tentando ler. Que do tempo entendi sermos feitos de medos iguais. Que dos fins, vi começos. Que, das férias, vi ilusões. De cortinas que se fechavam, vi se abrirem outras. Que os medos que tenho hoje não são outros dos que me viram crescer. Que os meus quarenta eu não sinto. Que você crescendo dentro de mim era eu junto. Que você crescendo ao meu lado é exemplo. Quero lhe dizer que não sei. Que ao ter você em meus braços, sinto como se soubesse. E esqueço os meus temores para ser o seu farol. Que ser o seu farol acende um caminho dentro de mim. Quero lhe dizer que ao tentar ensinar aprendo de novo – ou quem sabe é a primeira vez. Quero lhe dizer o que quero me dizer. Que você é um amor em mim. É afeto melhorado. Que depois de você a vida é brincadeira leve. Que o perigo de ter você é um risco doce. Que a sua respiração me faz voar para bem longe. Que a minha respiração ofegante coloca vírgulas em mim. Que atropelo as vírgulas em busca dos começos que moram depois dos pontos finais. Quero lhe dizer obrigada pelas vírgulas. Porque ao lhe ensinar sobre elas, vou aprender.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Daninho e Fanquico.

Dani, seu amiguinho da rua, é oito meses mais novo que você. Há mais de um ano vocês brincam juntos todos os dias. (E um ano é boa parte de suas vidas.) De manhã, quando um avista o outro na rua, os dois abrem sorrisos e saem gritando.

Outro dia cheguei em casa e encontrei em cima da mesa o convite para o aniversário de dois anos do Dani. No envelope havia escrito: Para meu primeiro e melhor amigo. Meu coração ficou trêmulo: é sua vida cada vez maior.

Dias depois, Preta, a babá do Dani, tocou a campainha em casa e você ainda não estava vestido pra ir passear. Sugeri que ela subisse com ele. Rápido, você voou pra janela, acenando pra que ele o visse: "Oi, Daninho! É o Canquico!"

Canquico é como ele chama você — se alguém perguntar o seu nome, você sempre responde "Fanquico" (ou "Sanquico"). Mas, como bom amigo mais velho, você se empenha em falar a língua dele.

Amizade começa assim.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Pista.

Você brincando de deslizar o carrinho nas minhas costas. E ainda tem gente que diz que a vida não tem poesia.

Manual do pai solteiro.


Meu amigo Aggeo criou um blog sensacional. Inteligente, texto gostoso e recheado de informações muito úteis. Vou consultar sempre. Afinal, sou pai também.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Gosto retrô.


"A mamãe vai ganhá dineiro pra comprá um fuquinha."

Escrevi imediatamente para o Papai Noel.
Vamos aguardar, filho.

domingo, 1 de novembro de 2009

Vestindo você.

Chego em casa com você nos meus braços e vou vesti-lo enquanto você dorme. O ritmo das minhas mãos pelo seu corpo canta um amor doído de tanto. Busco seus braços, pernas, pescoço e cabeça com um cuidado silencioso que vela o seu sono, enquanto o meu pensamento voa além da sua pele para chegar ao futuro – não sem antes passear pelo que ficou para trás. O que me dói agora não importa: sou mãe. E é um amor impensado e impensante que conduz meus braços a tomá-lo de novo em direção à cama. Na casa quieta, gritam os meus medos e buracos. Dói o fantasma da minha própria ausência. Embora às vezes eu sinta que já falto, sim, quando voo para longe com o que não dou conta. Quisera eu ser uma mãe plena de mim, sem o peso de tantos desejos, sem a sombra medrosa de nunca mais ter um gosto real de família. Visto você de sonhos e força. E o protejo com o cobertor que me falta. Choro a falta de um colo, mas só depois de colocar você na cama. Antes de pensar ou sentir, sou sua mãe. Posso até não viver em mim, mas você vive. Antes de ser eu, sou mãe.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cuidado, Mamãe, eu sou perigoso.

Hoje peguei você tirando o protetor de tomada. Com a boca.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Dicionário do Fanquico.

– A Mamãe vai trabalhar no piquitador. Pra ganhar dindim.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Cartão.

Hoje seria aniversário do seu pai e eu me permito o desejo infantil de fazer chegar até ele um cartãozinho. Pra contar que brindamos a ele nesse domingo. E que uma campanha feita por ele é uma das mais lembradas de todos os tempos na Lápis Raro. Pra dizer que o tempo cura e o riso volta. Que eu me tornei alguém melhor depois que ele passou por aqui. Pra agradecer por ele ter transformado o amor em gente. E pelo milagre de vê-lo crescendo menino ao meu lado, fazendo do meu amor de mulher amor de mãe.

domingo, 4 de outubro de 2009

Ecologicamente incorreto.

Ontem de manhã, antes de entrar no carro:

— O mutitinho, Mamãe! O mutitinho! Ih, matou. Ô, tadinho!

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Sobre samba, alegria e despedidas.

Outro dia eu relembrava com um amigo a cena que teria sido a mais cinematográfica da minha vida com seu pai – e foram muitas.

Já contei pra você que naquele 17 de janeiro, bem na hora do enterro, cantei pra ele um sambinha do Nelson Cavaquinho. "Graças a Deus, minha vida mudou. Quem me viu, quem me vê, a tristeza acabou. Contigo aprendi a sorrir, escondeste o pranto de quem sofreu tanto. Organizaste uma festa em mim e é por isso que eu canto assim: la la laiá, lalaiá, lalaiá..."

Parece incrível que uma grávida vestida com um tomara-que-caia preto tenha tido presença de espírito pra cantar diante do corpo do pai da criança que estava em sua barriga. Hoje, dois anos e meio depois, ainda me assusto por ter tido essa coragem.

Acho que nesse dia a vida me ensinou o senso de oportunidade. Era preciso, não podia ficar pra depois. A hora da homenagem era aquela, e eu tinha uma vontade de dizer pra todo mundo o quanto eu tinha sido feliz com seu pai. Disse. Com todas as letras e notas, diante de uma plateia que talvez tenha se dividido entre a emoção e o deboche.

Mesmo que eu e ele tenhamos sofrido muitas vezes antes, mesmo que eu viesse a sofrer muito a falta dele depois. Aquela era a hora, e eu soube viver aquele único momento com inteireza, sem pensar no futuro ou sofrer por antecipação. Fiz com satisfação porque eu carregava em mim um coração agradecido. Ou melhor, dois.

O samba tinha sido enviado pelo seu pai a mim, no início do amor, e eu sabia o que ele queria dizer com isso. Depois de alguns anos vivendo um amor calado e sem resposta, em que a mulher dele só tinha tempo pra trabalhar, ele havia encontrado uma companheira tão aberta para se dar quanto ele. E isso era pura alegria.

Houve também um disco da Marisa Monte, "Universo ao meu redor", que me fez companhia enquanto eu e seu pai estávamos separados, fazendo dos ouvidos a porta de entrada para a esperança e o gosto, de modo que os dias melhores vieram, como se eu os tivesse previsto. Depois, quando seu pai já não estava mais aqui, ouvi esse disco exaustivamente de novo, dessa vez com você no colo, e começava ali mais uma história de amor: a nossa.

Hoje, tempos e amores depois, resolvi colocar o mesmo disco pra tocar aqui na mesma sala, num dia de tristeza inédita. Ou de uma velha melancolia, exibindo as feridas que ainda habitam em mim.

É incrível como fui capaz de esquecer desse antídoto, como se eu estivesse apegada às dores que me assaltaram de algumas semanas pra cá – e a dor tem os seus encantos. E de novo descubro que em mim existem sorrisos de verdade, e com as notas procuro fazer a esperança espantar o medo, esse que desenha um futuro escuro como numa tentativa de nos proteger de alguma decepção – mas o faz de um jeito burro, porque é muito melhor ter esperança que deixar de viver a felicidade por medo de ela acabar.

O samba ensina entusiasmo, filho. Mesmo que fale de acontecimentos tristes, desamor ou abandono, ele canta a alegria que virá, inevitavelmente, porque a vida é mesmo em ciclos. Quem canta um samba lembra que a vida é agora, e se despede da tristeza com graça, antecipadamente, como quem coloca vassoura atrás da porta, confiante de que assim a visita indesejada vai logo dar um jeito de ir embora.

Cantar e sambar é um jeito brasileiro de acreditar no futuro, em notas que choram docemente, lembrando que satisfação é estar vivo e que isso deve fazer algum sentido.

E é assim que hoje, ouvindo samba, decidi começar a caminhar de novo, mesmo com os pés doendo: com a certeza de que em pouco tempo vou encontrar um lugar pra me sentar, tirar os sapatos e apreciar a estrada. Para depois dar mais alguns passos descalça e, com novos calos a proteger os pés, descobrir caminhos que nem estavam no mapa, e voltar ao prazer da viagem.

Lá na frente, quem sabe eu mesma faça um sambinha, cantando em humor as vezes que errei o caminho – e de como foi bom aprender.

domingo, 20 de setembro de 2009

Uivo.


No carro, eu e você seguíamos ouvindo essa música da Emiliana Torrini, do CD que ganhei de presente da Nina, lá da Alemanha. Por volta de 1 minuto e 50 segundos, ouço você cantando junto – como um pequeno lobo dando o seu primeiro uivo. Cantar está no seu instinto, filho. E isso é muito emocionante.

domingo, 6 de setembro de 2009

Identidade secreta.

Em nossos passeios no fim de semana saio de casa carregando a minha bolsa, a sua e um brinquedo – e ainda sobra mão pra levar você no colo. Sou a Mulher-elástico, a mesma que, enquanto dirige, estica os braços pra lhe dar a chupeta. Pra fazer você rir, busco o Didi Mocó que mora em mim. Nas muitas vezes em que você me surpreende, sou ninguém menos que a Supermãe. Mas quando você faz das suas, explodo como o incrível Hulk. Na volta pra casa, carregando cansaço e sacolas, quem lhe dá as mãos é o Homem-aranha. O mesmo que resgata o menino que de vez em quando se solta da minha mão e sai correndo. Ao final de um domingo, quando o silêncio toma conta da casa, minha verdadeira identidade se revela: sou só uma menina sonhando com um príncipe encantado que me leve no colo até a cama. Isso, até ouvir seu choro no meio da noite: voo até o seu quarto como o Super-homem. Depois volto a dormir.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Amor sem descanso.

Você aprendeu a vírgula, filho. E já entendeu o valor que essa pausa dá ao que vem depois. "Quer brincar, Mamãe?" A cada vez que você me pronuncia, é o meu coração que dispara. Sem nenhuma vírgula entre uma batida e outra.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Wikiducação.


Para ouvir o podcast da entrevista de hoje, clique aqui.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

domingo, 26 de julho de 2009

Jack Johnson para os ouvidos.

"Som, Mamãe. Jéssicon." Alegria ver o seu gosto musical se manifestando, filho.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

17 de julho.

Esta costuma ser uma data especial para nós. Hoje você saiu do berço talhado em ferro para uma caminha de madeira. Surpresa: você descobriu que a cama é leve e não para de arrastá-la para todo canto. Quantas aventuras nos aguardam, filho.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Sem.

Hoje ela faria 100 anos.


Parte da minha turma do andar de cima.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Para aprender a melancolia.

Nas horas tristes, filho, não diga nada. Coloque um silêncio bem alto no aparelho de som. E comece a escrever bem baixinho. (Chorar até que pode, desde que não lhe embace a vista). Só não pare: tristeza é pra escrever. Tome posse dessa dor que é toda sua. Até que passe e venha outra mais bonita.

sábado, 20 de junho de 2009

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Sobre a minha alegria.

Que não é por nada, nem para nada. Essa que aprendi de mim. Que veio comigo, desde sempre. De vez em quando me perco dela e ficamos a nos procurar: eu por ela, ela por mim. Ela que é minha, que sou eu. Que sou. Sei que ela está aqui. Como quando perco alguma coisa dentro da bolsa repleta de coisas e toco em todas elas, menos no que é tão urgente. Respiro fundo. Calma. Ela está aqui, tenho certeza. É simples, eu vou encontrar.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Só.

Só tenho mesmo a minha escrita.
E uma vontade de me livrar dela.
Talvez assim caiba esse amor todo aqui dentro.

terça-feira, 2 de junho de 2009

Ele é bom nisso.

Eu acho, filho, que Deus joga Playstation com a vida da gente.

sábado, 9 de maio de 2009

Sobre o que somos e o que parecemos ser.

Um anônimo comentou no post anterior:

Cris, acho que você mudou muito. Te acompanho desde o começo do blog. Me desculpa ser tão franca, mas acho q você ficou muito metida depois que ficou tão conhecida. Parece que você quer só aparecer e nem posta mais no Para Francisco, e quando posta, as mensagens nem nos comovem tanto quanto antes.


Acho importante responder aqui:


Anônima,

Obrigada por sua tentativa de franqueza, mas acho que você teria sido de fato franca se assinasse o seu comentário. Ainda assim, também francamente, convido você a algumas reflexões.

Você tem razão, eu mudei muito. Ainda bem. Imagine se eu tivesse ficado presa na perda de dois anos atrás.

Diante de uma dor que eu pensei que fosse me consumir por anos a fio, tentei encontrar caminhos. Meus blogs foram alguns deles. Nasceram naturalmente e foram muito importantes para que eu elaborasse o meu luto e pudesse seguir em frente.

A repercussão de tudo isso me surpreendeu muito. E me alegrou, sim. Tudo isso foi fundamental para que eu encontrasse novos caminhos pra ser feliz.

E a minha escrita, que não mais comove você, provavelmente não o faz por não ter mais a tristeza como essência.

Continuo escrevendo, não para ter leitores, mas para exercitar uma possível escritora que existe em mim. Se esse caminho me levará a outro livro, a uma nova forma de escrever, não sei. Mas tenho uma certeza: a de que passou o tempo de escrever só sobre a perda. Porque passou mesmo. Não teria sentido ficar dois anos escrevendo sobre um sentimento que eu consegui deixar para trás, apenas com o intuito de comover pessoas.

Ainda assim, acredito que muito do que escrevo aqui hoje ainda é capaz de comover. Mas não estou comprometida com esse efeito. Escrevo sincera e francamente, e apenas quando me vem a necessidade de expressar. Com essa autenticidade, sim, eu me comprometo.

Se você ler o meu blog do início ao fim, vai perceber claramente um caminho. E esse caminho muito me orgulha. Consegui, com a ajuda dos meus amigos, da minha família, do meu filho, da minha escrita e dos seus leitores, vencer o sofrimento da perda e me desvencilhar da teia que me enredou. Consegui amar de novo, sonhar de novo, desenhar novas perspectivas e me alegrar com elas.

Talvez você enxergue essa cabeça erguida como convencimento ou pretensão. Compreendo. É irresistível julgar os outros, principalmente quando nunca estivemos no lugar deles. É provável que eu também tenha feito um julgamento ao ler o seu comentário. E talvez, no seu lugar, assistindo a essa mudança, eu tivesse a mesma impressão sobre quem escreve este blog.

Ao longo desse tempo, infelizmente, percebi que muitas pessoas que estavam à minha volta nos dias seguintes à morte do Gui se afastaram de mim quando tudo entrou nos eixos. Até mesmo algumas pessoas próximas parecem não ter dado conta. Acho que incomodei e continuo incomodando porque troquei a tristeza por uma alegria exuberante ao ver como a vida pode nos dar coisas lindas depois de nos tirar outras tantas.

Entendi há pouco o sentido da frase que diz que "o mineiro só é solidário no câncer". As pessoas têm mais dificuldade de nos ver alegres, em evidência, chamando atenção. Não estão tão preparadas para isso quanto estão para nos ajudar no meio da tragédia.

Esse aprendizado foi o mais duro. Entender que, ao contrário do que sempre pensamos, é nos momentos felizes que sabemos quais são os nossos verdadeiros amigos: aqueles que, além de ajudar, se contentam ainda mais com a nossa felicidade e continuam perto de nós, independente do nosso estado de espírito.

Se você conviver comigo (sabe-se lá se já não convive), saberá que aparecer não é o meu objetivo, como também não quero e nem preciso me esconder. Saberá também que tenho satisfação em falar das coisas boas que esse período produziu, dos caminhos que a vida mostrou de forma tão surpreendente, e principalmente do que aprendi com tudo isso. Saberá que uma das minhas principais satisfações é poder passar esse aprendizado pra frente.

Dizem que sabedoria é aprender com a experiência dos outros. Eu raramente consigo. Mas posso dizer que consegui aprender muito com essa minha experiência de dor e alegria, assim como aprendo com o seu comentário.

Talvez a minha escrita não a emocione mais porque estou feliz e serena. Talvez você se incomode com o fato de eu não postar com a antiga frequência – porque realmente não tenho mais a necessidade de escrever que existia antes. E porque você provavelmente faz parte do grupo que odeia me ver posando no meu blog de moda, preferindo a tragédia poética do blog que escrevo para meu filho.

Eu não. Ao olhar para trás e ver tudo o que passei, tudo o que ganhei, todo o caminho que percorri, o livro que escrevi, sorrio, sim. Mas também me comovo e acho tudo isso muito bonito. E sei que sou pequena diante da força do que tinha que acontecer.

Se você soubesse o verdadeiro significado que isso tudo tem para mim, talvez tivesse outra opinião. De qualquer forma, agradeço a sua coragem de falar o que muitos devem pensar, mas não dizem. Agradeço também pela delicadeza (de verdade) com que postou sua crítica. E desejo a você tudo de bom nessa vida, de coração.

Cris.

sábado, 2 de maio de 2009

Café com alegria.

Depois de dar uma entrevista para o Sebah e ver publicada uma bela matéria no jornal Letras, do Café com Letras, tive a alegria de encontrar por o Para Francisco, à venda e em destaque. Para quem quer saber onde encontrar o livro, recomendo com gosto: é um lugar gostoso onde você pode ouvir boa música, comer bem e encontrar pessoas interessantes. O Café com Letras fica na Rua Antônio de Albuquerque, 781, na Savassi, em Belo Horizonte. O telefone é (31) 3225 9973. Ao visitar BH, não deixe de passar por lá.

sábado, 18 de abril de 2009

Persistente.

O que ainda insiste em doer não é ter perdido o seu pai. É ele ter perdido você. Dessa dor eu constantemente me esqueço. Mas não tenho a ilusão de que ela passe.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Amor e ponto.

Houve um tempo em que as certezas fugiam dele – elas conseguiam, ao contrário de mim. Foi um tempo nebuloso em que às vezes chovia, às vezes fazia sol. Mas, independente do clima, a gente se encontrava. Atravessávamos noites e noites lado a lado, acordando mais juntos ou não. Eu me lembro de muitas em que ele adormecia antes de mim. Abraçada ao seu corpo, eu dizia para o silêncio: "Amor". Era solitário. Ficávamos eu e o que não cabia em mim, procurando um lugar que pudesse nos abrigar. Dias e noites se repetiram e o amor se manifestava, seguidas vezes, do coração para a boca, sem enfrentar grandes distâncias. Era um segredo meu comigo. Até um dia em que fechei os olhos antes dele. "Amor." – ouvi num susto. Finalmente ele havia parado de lutar. Não mais se debatia. Num sorriso, se entregava ao que era feliz. Eu chorava. Era alegria demais. Algum tempo depois, já era corriqueiro. Mais algum tempo, você. Que antes era só um outro desejo escondido – também nele. O verbo se fez carne, como ele mesmo disse um dia. (Ainda bem que deu tempo.) A palavra amor seguida de um ponto final é para poucas pessoas e poucos momentos. Para poucos porque é muito.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Aconteceu.

Tenho errado o caminho que me leva à saudade do seu pai, como quem procura em vão por um bar que já fechou e onde – é preciso encarar – a turma não mais se encontra.

Tenho agora mais tempo de você do que dele. Embora com a sensação de que eu saiba mais sobre ele do que sobre você. É que a cada dia você nasce mais um pouquinho. Enquanto nós, os adultos, desaprendemos a nascer e corremos o risco da monotonia. Tento que não seja assim. Ele conseguia.

Eu me lembro de pensar no tempo que ainda viria. Será que eu daria conta de tanto sem ele? Surpresa. Demorou pouco para que a vida voltasse sangue circulando, vermelho vivo, oxigênio sem memórias tolas.

Eu me lembro tão menos dele. Não posso dizer que esqueci seu rosto, pois ele acende todos os dias em você. Mas as lembranças se distanciam, doces, esmaecidas. Não pulsam mais.

Eu me lembro mais do amor do que dele mesmo. Um sentimento que emoldurei e, amarelado, fica ainda mais bonito. Eu me lembro de um tempo que me conta uma história e ela nem parece mais ser minha.

Mas hoje eu desejei muito me lembrar do seu pai. Desejei que ele pudesse me ensinar de novo. O quanto e o como ele sabia viver. Não importava o dia da semana, a hora do dia, o dinheiro na conta. Era sempre um prazer. Era rotina (e ele cultivava a rotina), mas não era repetir.

Um livro nas mãos. As mãos bonitas. Os olhos no livro. Um prato servido por aquelas mãos. Os dedos cuidadosos. O traço, a voluta, a volta, a cor, os tons. Pausa para um café. Conversa mansa e uma voz firme que também era veludo. Palavras perfeitas e inteiras digitadas num e-mail qualquer. Enquanto bebia café, beber café era o que ele fazia. Enquanto cozinhava, cozinhar.

Não era quase, era inteiro. Não era qualquer. Era presente. Não era abraço, era eterno. Não era de novo. Era sempre diferente.

Talvez aquele olfato apurado, talvez os olhos dos quais nada fugia, talvez a boca que sabia exatamente o que dizer. Ele não fazia duas coisas ao mesmo tempo. Mesmo que fizesse.

Era sempre um prazer. Se delicadeza, plena. Se braveza, uma que dava medo — era assim se ele baixasse o tom de voz. Mas era sempre presente.

Ele não faltava. Estava sempre lá, vivendo cada segundo da sua vida. Até o momento em que não esteve mais.

E porque ele cuidou de ser intenso, inteiro, foi embora sem deixar o que não tivesse feito. E porque cuidei dessa dor com gosto, pouco me sobrou dela.

E porque ele me foi presente, ele agora nos falta inteiro. Para que nós, eu e você, possamos aprender a sorver por completo cada gota da nossa própria existência.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Boa sorte!


A Darlana também tá sorteando o livro para Francisco. Vai pra ver como faz pra tentar ganhar o seu. Enquanto isso, assista aqui ao trailer do livro.

quinta-feira, 19 de março de 2009

De como eu me perdi da minha velhice.

Você vai fazer dois anos.

E eu não quero voltar no tempo, filho. O meu olhar é para frente porque ali está você. O meu olhar é para mim, porque eu me vejo em você e cresço de novo. Aprendo com a sensação de quem ensina.

Eu agora observo ônibus nas ruas. Se são azuis, verdes ou vermelhos. Se são amarelos, grandes ou pequenos. E me permito definir coisas primárias. Aquele é um caminhão branco, aquele é um ventilador, aquele não, é um lustre. A estrela brilha, a formiga anda, o gatinho mia e, ouve só, é um helicóptero voando. O avião também voa. E o bem-te-vi, que lindo. O mico, não. Vive lá no alto, mas desce pra comer banana da sua mão.

Parece que eu nunca tinha pensado nessas coisas. A borboleta também não se lembra que já foi lagarta. E voa.

Diante do sentido primeiro das coisas, daquele de que me perdi, conto histórias de objetos e já não temo suas razões cruas, seus sem sentidos e despoesias. Todo dia saio procurando para você um mundo com mais significado. E encontro.

O seu olhar não é de estranhamento. Por que o meu deveria ser? O seu olhar é de encantamento e acende o meu.

Luzinha é sempre de Natal. Não ouso discordar: que a vida seja Natal.

Sua fala é nota musical, gosto, re-pe-ti-ção. E em mim vou desenterrando histórias, artimanhas, saídas engraçadas. Invento, se for preciso. O tigre que come verduras, o leão que é educado, os amiguinhos inanimados que têm cada um o seu nome e, todos, merecem beijos e abraços de carinho. Principalmente os que têm pelos.

Não é mais o trânsito. São os ônibus vermelhos, amarelos, verdes, azuis. São as árvores, a estrela, o anjo, a lua, a florzinha, o ventilador, a nuvem, o menino. É o trânsito e o céu. O em volta, ao lado, todo. Não é mais repetição: é descoberta.

Às vezes me perco nas não-escolhas e me agarro a elas, atrasando o seu passo. Você volta e me pega pela mão. E no caminho tudo volta a ser novo.

A cada manhã você des-cobre os meus olhos. Tira deles o que me embaçava a vista e coloca no meu colo, mais uma vez, uma paisagem fresca.

Você vai completar dois anos, filho. E eu me sinto com muitos anos a menos.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Mais uma chance de ganhar o seu exemplar.

A Carol se emocionou, falou sobre o livro e ainda está sorteando o dela. Aproveita: vai .

domingo, 15 de março de 2009

Muito bem.

Fim de domingo, o cansaço de sempre e você sozinho no quarto, assistindo ao dvd do Palavra Cantada – prestes a dormir, chupeta e fralda em punho. Da sala, ouço a música terminando e o público aplaudindo. Eis que você também bate palmas. E ao final ainda diz: "Mointo bem!" Gostosura. Tem que ter um talento e tanto pra insistir em não ser feliz.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Mais uma chance de ganhar o livro.

As meninas da Casa dos Brechós estão com uma promoção onde você pode ganhar o livro para Francisco. Que alegria! Vai . Vai que você dá a sorte de ser o número 100.000. Meninas, muito obrigada.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Para as mulheres. Para os homens. Para pensar.


Criado por mim e pelo Daniel de Jesus na Lápis Raro, em 2008, especialmente para o Dia Internacional da Mulher. Nunca é demais repetir.

P.S. Fique à vontade para postar este vídeo no seu site.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

O barco e a bicicleta.

Há poucos dias me veio à lembrança a cena em que eu e seu pai chegamos à Ilha Grande, em dezembro de 2006, num barco de pescadores. Para pisar no continente era preciso atravessar, passando por outro barco. E eu me lembro do seu pai preocupado em me ajudar com a barriga de seis meses. Como quem coloca um adesivo de "frágil" numa caixa delicada, ele berrava para que os homens que nos ofereciam as mãos soubessem que ali não havia apenas uma pessoa, mas duas delas.

Eu carregava em mim a fortuna do seu pai.

Penso no significado disso tudo. E só hoje percebo que naquele tempo eu me permiti ser frágil. Naquele único período, talvez em toda a vida, incluindo os momentos de pequena, em que os sofrimentos pareciam tão maiores.

A gravidez nos deixa fortes, sim, mas os meus primeiros sete meses foram aqueles em que, curiosamente, eu pude me entregar ao colo do seu pai sem culpa, numa espécie de férias do remo.

Mas veio a tempestade, o barco quase virou e eu voltei a remar, filho. E mesmo que o sol de novo brilhe e o mar pareça calmo, confesso que em alguns momentos eu quero perguntar se falta muito – mas não tenho para quem fazer a pergunta. Aí olho pra você, meu companheirinho de viagem, e esqueço todos os perigos. Simplesmente estico o corpo no barco e me entrego ao sol batendo no rosto, sem pressa de chegar.

Acho que é da gente essa vontade de ter um porto, um porto pra descansar. Sei que sou capaz de continuar nadando por muito tempo e acho que já me acostumei com isso. Mas saber que existe um porto ameniza a viagem.

Como quando a gente é criança e pela primeira vez vai se equilibrar na bicicleta sem as rodinhas de trás. Um dia eu vou fazer com você o que fizeram comigo, e isso vai ser muito amoroso: vou tirar as rodinhas de trás sem que você perceba. Quando você menos esperar, estará equilibrado na bicicleta, sozinho, sem notar que nunca precisou de fato das rodinhas de trás. Elas estavam ali apenas para que você soubesse, apenas para que você fizesse da serenidade um ponto de partida.

Melhor seguir em frente sem pensar na ausência das rodinhas. Melhor não pensar nisso nunca.

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Absoluta.

Calhou que para mim não veio coisa fácil. Desde sempre foi assim. Uma sensação de estar só, um sentimento de não ser. Até entender que eu estava mesmo era em minha boa companhia. Mas ela se ausenta, vez por outra. E assim se seguiu a vida: a me mostrar que eu não iria pela boa e velha estrada. Eu pegaria os atalhos. Às vezes me pego querendo ser como, querendo ser que nem. Mas quando chego perto, descubro um todo mundo tão igual. No desejo de ser e não ser, de ir e não ir, na vontade de ser livre. No não saber o que é ser livre. Não saber o que é – um não saber. Tem hora que eu penso ter medo do que não sei. Depois eu me lembro: o que me dá medo mesmo é ter certeza. Que a minha sede é de vida e eu nasci agora há pouco.

Da Glauciana para você.

E por falar no livro, aqui você pode ganhar um. Além de escrever carinhosamente sobre o para Francisco, ela vai sortear um exemplar para os leitores do seu blog. Tem cada gente com gesto bonito nessa vida, que nem sei.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Onde comprar o livro?


Muita gente pergunta onde é possível comprar o livro "para Francisco". Deixo aqui as dicas de onde encontrá-lo com certeza: nas livrarias virtuais Saraiva, Fnac, Submarino, Cultura, Travessa e Laselva. Se você não compra pela internet, recomendo as livrarias físicas das mesmas redes: Saraiva, Fnac, Cultura e Laselva (isso significa que é fácil comprar o seu livro em vários aeroportos do Brasil). A livraria Siciliano também tem o livro.

Se você leu o "para Francisco" e gostou, ajude a divulgar o livro e os lugares onde é possível comprá-lo. E se a sua livraria predileta não tem o livro, pergunte se é possível que eles peçam o livro na editora (ARX/Saraiva) para você. Dessa forma você nos ajuda a ver o livro melhor distribuído e mais acessível. Obrigada.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Asas.

Agora mesmo, dentro de casa, topei com uma pequena lagartixa. Foi um custo eu conseguir que você a notasse, pois ela fugia, arisca. Tivemos que entrar e sair do quarto algumas vezes enquanto ela brincava de esconde-esconde junto à dobradiça da porta. Quando você finalmente a viu, a pequenina saiu deslizando por debaixo da porta. "Voou", foi o que você disse. Achei bonito o seu ponto de vista.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Vizinha.

De umas semanas para cá, uma ou outra barata tem aparecido morta na garagem do nosso prédio. Acredito que o criminoso seja uma dedetização encomendada pelo síndico. É o seu primeiro contato com esses seres e, confesso: me alegro que já estejam sem vida. Talvez a sua paixão aumente quando vir alguma em movimento. Ou não. De qualquer forma, para você, "a barata" é uma criatura muito especial, já que é a novidade do momento. Mal a porta do elevador se abre e você já está à sua procura: "Bauata, bauata!". Confesso que chego a torcer para haver alguma delas. É como eu dizia para o seu pai, parafraseando o Arnaldo Antunes: o seu olhar melhora o meu. Filho querido.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Pressentimento.

A persiana quebrou, o chuveiro queimou, o gás acabou. O dinheiro faz tempo que já não há. E hoje a campanha foi reprovada pela terceira vez. Sinto que alguma coisa muito boa está para acontecer.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Eba!

Mais uma oportunidade de ganhar um exemplar do livro "para Francisco". A Annie, de Pernambuco, está fazendo esta gentileza no blog dela. Para concorrer é muito simples. Que fofo, Annie. Um beijo pra você.

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Escuro.

Você vai aprender, filho. Que a intensidade pode roubar você de si mesmo. Que é preciso leveza para se pertencer. Você vai aprender a se distrair no meio do caminho – para ter o privilégio de errar. Vai aprender que as descobertas estão nos atalhos. E que é preciso alcançar o escuro denso para estar diante de todas as possibilidades. Você vai aprender a se deitar noite escura e amanhecer ensolarado. E vai entender que na perda mora o verdadeiro começo. Talvez você leve meia vida para isso. Talvez mais, como eu. Mas até lá, olha que sorte: eu vou estar segurando a sua mão.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Para economizar.

Aqui e aqui, você encontra o livro "para Francisco" por preços muito bacaninhas.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Porque é preciso voar.

Sobre o meu tio-avô que se foi outro dia, li hoje um texto escrito há muitos anos. E ele me fez chorar. Não só porque o Tio Hugo foi mais um que eu queria muito que você tivesse conhecido. Mas também pela sensibilidade do Humberto, que foi quem escreveu. É no meio de pessoas assim que eu quero que você viva, filho.


O espalhador de passarinhos

Rodando com a família pelas estradas de terra dos anos 1950, nas suas Minas Gerais, havia sempre aquele momento em que ele embicava o Chevrolet 39 para o acostamento, desligava o motor e pedia que todos se calassem. Aí metia o pescoço pela janela e ficava escutando o que, lá fora, a qualquer outra pessoa pareceria o mais compacto silêncio. A qualquer pessoa, não a ele, que de repente autorizava o reinício da algazarra no banco de trás ao informar, antes de pôr o carro em marcha, que naquela vereda lá embaixo havia um bicudo, ou um curiol, que é como ele diz curió. Não importa se o dicionário Aurélio desconhece essa pronúncia arredondada do nome da ave passeriforme, da família dos fringilídeos, catalogada como Oryzoborus angolensis: para Hugo é curiol, e pronto.

Bem mais que mestre Aurélio, que possivelmente nunca teve uma gaiola (a não ser que se queira chamar assim seus dicionários, gaiolas metafóricas onde aprisionar palavras), ele fala com a autoridade de passarinheiro, paixão pousada lá no fundo de seus 71 anos de vida. Paixão que já o arrebatava naquele Natal em que pediu um passarinho diferente, e encontrou sob a árvore, numa gaiola dourada, um bichinho colorido como nenhum outro. Como é que chama?, perguntou, extasiado. Camuflage, disseram-lhe. Por dois gloriosos meses, reinou sobre a meninada do bairro como possuidor daquela maravilha — até que em fevereiro, época da muda, seu Camuflage — que tinha sido pintado pelos irmãos mais velhos — perdeu as penas e se converteu, Cinderela ao contrário, numa reles fêmea de papa-capim. Papai Noel, para Hugo, morreu ali.

A alma passarinheira, felizmente, resistiu ao golpe, e em nome dela é que ainda hoje, vira e mexe, ele se enfia numa botinas de goma e se manda com suas gaiolas para algum lugar distante. Nos anos 1940 e 1950, o rumo era quase sempre um vazio no mapa de Minas a que chamava de Sertão (corruptela de desertão, ele ensina). Lugar sujeito a onças, preocupava-se dona Wanda, que na tentativa de dissuadir o marido não media argumentos:

— Não é nem por você — disse um dia, hilariante em sua irritação. — É por mim que eu peço: já pensou na minha vergonha, tendo que contar que meu marido morreu de onça?

Hugo ouvia aquilo, pendurava no ombro uma capanga de lona e seguia em frente. Ia geralmente com os cunhados Mário e João Antônio, com algum sobrinho, um filho. Mas o companheiro habitual era um amigo bem mais velho, o ferroviário Elpídio. Com ele se embrenhava no Sertão por três, quatro dias, durante os quais, entretido na pega de passarinhos, negligenciava coisas secundárias como almoçar e jantar.

— Quem viaja com esse seu marido pode comungar a qualquer hora — queixava-se Elpídio a dona Wanda. — Está sempre em jejum.

De uma coisa Hugo sempre se orgulhou: nunca vendeu passarinho. E se comprou foi só um, o bicudo Juvenal — assim chamado porque pertenceu a um investigador de polícia que tinha esse nome —, prodígio cuja reputação atravessou as fronteiras de Minas para além de seus 26 anos de vida. Vinha gente vê-lo e ouvi-lo. Certa vez um amigo de Hugo, homem riquíssimo, sacou o talão de cheques:

— Diz aí quanto você quer no Juvenal.

O dono do bicudo encerrou a conversa:

— E como é o canto desse cheque?

Em lugar de vender, soltou o veterano Juvenal em Cristalina, Goiás, em meados da década de 1970. Devolveu-o à natureza na esperança de ver perpetuado o inigualável canto de Araxá. Pois também os bicudos, como os seres humanos, arrastam sotaques — nenhum deles mais belo que o que se ouve nessa região do Triângulo Mineiro. Que se ouvia, aliás, pois já não existe o canto de Araxá, adulterado ao longo dos anos numa babel de trinados plebeus. O que sai hoje da garganta dos bicudos não é mais que um insípido esperanto canoro.

Hugo inquieta-se, também, com a rarefação das espécies, e por isso vem, há décadas, colhendo passarinhos onde sejam abundantes para semeá-los onde vão escasseando. Batalha para retardar a extinção — eis um esforço quixotesco de que não se fala nos jornais e muito menos rende votos. Quem passar hoje pelo Morro do Chapéu, por exemplo, nas vizinhanças de Belo Horizonte, como aquele Chevrolet 39 nas estradinhas dos anos 1950, e ouvir cantar um pintassilgo, não saberá que ele pode ter vindo da distante Itamarandiba, no Vale do Jequitinhonha, nas asas de um perseverante espalhador de passarinhos.

(para Hugo, meu pai)


Escrito por Humberto Werneck, em outubro de 1990. Jornalista e escritor, Humberto tem vários livros publicados e lançou recentemente "O santo sujo"
.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

No uol.

Uma resenha feita pela Martinha. Amiga virtual, mas já muito querida de verdade.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Águas.



Foi em março que conheci esta versão da famosa música do Jobim – você estava prestes a nascer. Ouvi-la, hoje, é sentir no rosto de novo a brisa delicada de uma calma triste. Uma calma que me falava sobre o que não podia ser mudado e sobre as revoluções que me aguardavam por trás do que não podia ser mudado. Da delicadeza de um novo momento, mesmo que soasse violento em sua muda chegada.

As águas de março eram o fim do caminho e, da viagem seguinte, você era o começo.

Novos amores se anunciavam como flores, a começar pelo seu. Novos ares. Alguns desejados, outros não, revelando que a vida é quem faz as escolhas, por mais que nos dê outra ilusão. Ela nos brinca e em suas mãos somos criança. Entre uma brincadeira e outra, vem a morte para nos ensinar tanto a urgência como a calma resignação.

E é no jogo bobo e repetido que vai se revelando: o que passa, o que vem para ficar, o que é só caminho, o que é lugar para morar.

O tempo avança e luto para conquistar finalmente a calma. Penso que a conheço, mas ela me foge invisível. Em minha pressa de fazer sozinha, como se eternamente eu não vá ter com quem contar, me vejo a cada dia mais veloz, elétrica, acelerada. O que ontem sequer existia me invade e amanhece urgente, imprescindível, essencial.

Em minha ânsia de viver, esqueço de respirar. E o que é pior: sufoco também.

Você é tão parecido comigo, filho. A paciência que lhe peço é a paciência que não tenho. Por tantas vezes a vida me parece gritar pedindo que eu espere. Que eu espere, porque já vem. Mas não consigo.

Escrever é meu respiro, é quando tomo o ar para novos vôos – por mais rápido que voe, o avião parece flutuar entre as nuvens, essa ilusão de tempo e de espaço que nos dá a dica: a vida é tal e qual.

A vida é provocação. Se um dia me grita que é curta, manda em seguida a mensagem de que é preciso saber esperar. Avança e recua, oferece e retira, para nos medir, não a força, mas a capacidade de brincar.

E como você ao repetir mil vezes um mecanismo novo que acaba de descobrir, o tempo oferece meditação. É assim o seu jogo, com enigmas que mais rápido nos devoram se os tentamos engolir.

Não importa o quão irritante isso tudo me pareça. Nada vai mudar o fato de que não se toca o tempo com a mão. Não posso empurrá-lo ou puxá-lo, ele não vai nem vem, não pode que lhe sejam.

Admito, tenho pressa. Mas é pressa de chegar em casa e finalmente descansar. Pressa de ter calma. Pressa e sempre inimiga. É que nessa correria feia, por mais vezes me perco no caminho, sem conseguir chegar.

Em minha tentativa de lhe apresentar a serenidade, descubro que você é que veio me ensinar. O tempo, em seu ritmo criança, nos faz todo dia o mesmo convite a viver delicadas repetições e, assim, sorver a essência sutil do que não é feito.

Espero que eu, sempre tão rápida, não aprenda tarde demais.