segunda-feira, 17 de março de 2008

Jack Jonhson está vivo.



Quando você for maior, filho, vai descobrir que nariz e ouvidos foram feitos para sentir, não para pensar. E vai experimentar a força de um aroma ou de uma música para trazer de volta as sensações mais antigas – e, só depois, trazer os fatos e pessoas por trás delas.

Nos dias seguintes à morte do seu pai, a parte mais difícil era ouvir a trilha que embalou a nossa história. De repente, num fechar de olhos, as canções que sempre me fizeram a alegria passavam a suscitar a maior dor do mundo. Se as músicas eram as mesmas, eu parecia não ser mais. Pensar que os olhos do seu pai tinham se fechado para sempre parecia fechar também a minha possibilidade de abrir um sorriso. A alegria de ouvir nossas músicas tinha perdido o sentido.

A pior parte era “Traffic in the sky”, do Jack Johnson, que talvez seja a primeira da nossa trilha sonora. Ainda hoje é difícil ouvir essa faixa sem ouvir de novo o som das nossas primeiras risadas, sem flagrar os olhos dele acompanhando os meus. São notas que me fazem sentir o cheiro, a pele do seu pai encostando na minha, o ritmo do seu corpo dançando. Notas que fazem nascer de novo a minha paixão por ele, com o mesmo frescor.

Lembrar é sentir de novo.

Ouvir qualquer disco do Jack Johnson me trazia primeiro uma alegria na alma e, depois, uma tomada de consciência que doía profundamente. Porque só mais tarde eu ia pensar de onde vinha aquela alegria – e era doído saber que vinha de um lugar que já não existia mais.

Até eu entender que muitos motivos daqueles risos também vinham do que estava à nossa volta. (A falta é a luz de um flash nos cegando por um tempo.)

Quando você tiver idade para entender isso, poderá desconfiar que a música que estou ouvindo agora pode ter sido determinante para o espírito do texto que você agora lê – e é interessante que um mesmo texto possa unir dois “agoras” tão diferentes.

Música era uma linguagem minha com seu pai, filho. Acho que foi por aí que começamos a nos gostar. Na época em que o email parecia mágica, ele usou muito esse recurso para me enviar, não informações, nem textos, mas pedaços de seu coração pulsando e de sua pele quente. Isso a internet faz muito bem: a tecnologia, tão exata, envia o inexato para tão longe. Ou para tão perto do coração.

Porque no nosso caso, trabalhávamos a dois metros de distância, um de frente para o outro. Ele podia dar dois passos e falar no meu ouvido, mas a coisa chegava de um jeito charmoso, silenciosamente, pela tela, enquanto, olhando um pouco por cima do computador, ele tentava ver minha expressão para me adivinhar a reação.

Nunca ninguém tinha entrado tão suave e profundamente na minha vida.

Se não eram ouvidas no carro ou em casa, as músicas chegavam por um filme a que assistíamos juntos, eram cantadas em dueto pelas estradas numa viagem qualquer ou nos conquistavam em danças improvisadas no meio da sala.

E é maravilhoso ver o que a música também é capaz de fazer com você, Francisco.

Mas o amor vai além.

Perder alguém com quem tínhamos tanta afinidade é perder alguém de quem já conhecíamos as reações, as preferências, um pouco da alma. O que se mostra na segunda etapa da saudade, que é quando começamos a ouvir novos discos – que, mesmo inteiramente novos, ainda têm o poder de trazer sensações parecidas com as dos momentos que passamos com quem nos falta.

Ainda hoje, ao conhecer músicas diferentes, me pego reconhecendo aquela que o tocaria. E até o imagino dançando. Ele no passado, a música no presente e a gente insistindo em desejar juntar os dois. É bem doída essa saudade do que não foi vivido.

Conhecer uma coisa nova e identificar nela o que agradaria o outro é sinal de muita intimidade, filho. E intimidade é uma das melhores conquistas na vida. Por muitas vezes me percebo falando do jeito que eu falava com ele, ou do jeito que ele falaria comigo. Por outras me pego dançando como se eu fosse ele. Como, então, ele não estaria presente?

Depois de alguns meses, como seu pai nunca mais ligou, eu me rebelei. E não admiti me separar também do que outrora tinha me trazido tanta alegria.

Aos poucos, fui fazendo as pazes com Jack Jonhson. E também com Finley Quayle, Madeleine Peyroux, Dinah Washington, Jorge Ben e tantos outros. Músicas que hoje me trazem apenas a sensação de alegria, sem trazer junto a dor da falta.

O Jack Jonhson não precisava morrer junto com o seu pai.

E assim, exercitando ouvir de novo a nossa trilha, fui aprendendo a reconstruir minha alegria. E o seu pai foi vivendo de novo, feliz, dentro de mim. Finalmente entendi que ao perdê-lo não fiquei sem um pedaço meu: um pouco dele é que ficou em mim.

27 comentários:

Anônimo disse...

Lindo.

Sofia disse...

Música tem um poder terrivelmente incrível mesmo. Ainda não olho pras músicas de um jeito tão maduro como você! Tem músicas que amo e me lembram momentos felizes, mas quando vejo que os tempos mudaram, ouvir essas músicas só me fazem ter vontade de chorar. Espero chegar ao seu nível de amadurecimento e sensibilidade logo logo, pra saber apreciar as coisas do jeito que devem ser apreciadas.

Você nos dá um banho de lições de vida. Um beijo!

Flor de Bela Alma disse...

Dinah Washington....ui, Cris, arrepiei!!Bejoca!Bia

Anônimo disse...

Eu entendo bem (ou relativamente bem) o que vc disse. Música pra mim tem uma importância extrema. E tem sempre gosto de lágrima, que pode ser ou não acompanhada de risos e dança.
Querida, belíssimo texto. Dei até uma olhadinha por cima do meu pc, tentando imaginar as carinhas sapecas de vcs.
Bjs em vcs dois (vc e Cisco) e um suave nas suas lembranças.

Anônimo disse...

Que alma mais sensível a sua...você não tem noção de como foi importante pra mim te ler hoje.
Sinta-se abraçada e vai desculpando o que por aqui já virou clichê: Te admiro muito!

Anônimo disse...

Música é algo realmente incrível, né?! E a sua sensibilidade tbm!
Lidar com a saudade é extremamente complicado. Lembrar com alegria, sentir saudade sem a dor da falta é para poucos. Vc é uma guerreira, Cris!!!
Bjinhos
Dani

Anônimo disse...

DEMAIS
DIRETO PRO CORAÇÃO SEM ESCALAS
BJS
RAQUEL

Anônimo disse...

Você tem tatuadas as palavras Alegria e Delizadeza.

E Sensibilidade, você tem?



Estou na espera do livro, quando ele vier, sem pressa.

Ana Paula Soldi disse...

Cris é verdade mesmo, como um aroma, e uma música nos transportam para bem longe, e nos trazem sensaçoes.
beijus

Renata disse...

Cris, que texto mais lindo! Você é realmente uma flor!!!
BJS
Renata

Ingrid Jordão disse...

Todas as sitações sempre perfeitas...
Parecem que as palavras saem com uma forma de musica...
Parabéns sempre....

André Gonçalves disse...

você nao fala com o francisco. fala com a gente.

Anônimo disse...

Oi Cris, meu caminho de chegada pela internet ao outro é bem curtinho... Quase nunca fiz uso desse trajeto. Costumo usá-la apenas com quem já convivo.
Mas só queria dizer que se não fosse por aqui, 'virtual', seria real... Certamente seríamos amigas!
Música, olhares, sentimentos, textos, ternura em cada gesto, reflexões...
Obrigada por fazer da sua vida uma sala de estar, de onde sempre saio mais rica, mais gente!
Beijo doce em seu coração! E no do Cisco tão lindo!
Cláudia Chaves

Anônimo disse...

Sem palavras... Só escutando a
música...
Beijo no coração,
Adriana.

Renata Carvalho Rocha Gómez disse...

Profundo...
Delicado...
Sensivel...
Um beijo no coraçao pequena !

Ana Carolina disse...

Lindo, lindo, lindo...mil vezes lindo!! Emocionante.
beijos

eueasminhascoisas disse...

só tenho uma coisa a lhe dizer: Linda coragem e que proteja o Francisco sempre!

Anônimo disse...

delicada.
você é delicada.

Unknown disse...

Linda, delicada, sensível,generosa, forte, guerreira, honesta, corajosa, inteligente, estilosa, escritora, alegre e com muito bom humor. Nossa, o Francisco é realmente um menino de muita sorte! Sou sua fã! Adoro vir aqui! Obrigada. Beijos...
Taisa Lima.

Karim Scharf disse...

Já tem dias que estou visitando seu blog e sua história. Nem sei como cheguei aqui... mas fiquei! Tocada por suas palavras, pelas cartas ao seu filho, me sinto emocionada demais ao ler parte do que se passa em seu coração e que você descreve aqui. Sei que na verdade, ai dentro deve ser infinitamente mais intenso que suas palavras. Puxa... e eu nem sei seu nome! Pequena? Delicadeza? Alegria? Guerreira? Amor? ...Mãe! Um beijo carinhoso e toda luz do mundo pra você!
Karim e Léo http/petitpia.blogspot.com

What I know disse...

Você não estava narrando, escrevendo...criando... tenho certeza que você estava cantando todos os mais sinceros sentimentos...

Obrigada por mais essa bela canção!

Felicidades

Minha moda de hoje disse...

Cris, estava lendo os últimos posts seus daqui e chorei no que escreveu no dia 9 de março.
Não pense que vc está criando o Francisco sozinha. Deus não dá uma cruz maior do que podemos carregar. Vc é forte, batalhadora, vitoriosa, tem uma legião de fãs e amigos que realmente te querem bem (mesmo aqueles que como eu não te conhecem pessoalmente). Vc é leonina (de que dia?) e leoninos são tudo de bom. Não tenho palavras para expressar o quanto te acho uma linda pessoa e o quanto desejo que vc e o Francisco sejam muito felizes. Um beijinho carinhoso e aproveito para desejar uma Páscoa feliz e com bastante chocolate (você pode, né?). Mary

Anônimo disse...

Mais um texto pra fazer nosso coração sair aos pulos. Beijo no coração Cris!

Unknown disse...

nem é novidade o q vou dizer, já que tanta gente diz isso todo dia aqui.

mas seus textos tocam a alma, fazem sentir. PArabéns.

L@N disse...

NOssa Cris , a cada dia que leio seu blog me encanto mais, qdo parece que naum haveria mais nada que pudesse me surpreender...me pego novamente chorando com suas palavras doces...Nunca pare de escrever vc é uma escritora marvailhosa, coloca amor no que escreve e com certeza nos encanta a cada dia... beijos

Há um Lindo aniversario para o bebê mais fofo do mundo... e eu acho ele a cara do pai...muito parecido mesmo

Anônimo disse...

Cris, esse seu post me lembrou o filme "A casa do Lago" com Keunu Reeves e Sandra Bullock.
Vc já assistiu?

Anônimo disse...

:)
Você é muito iluminada!
Desejo à vc além de muitas outras coisas boas, e sentimentos bons...
que a GRATIDÃO reine em todos os segundos da tua existência!
Beijo na alma